Referência
do texto:
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal;
Lídia do Valle Santos Leal. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. |
Desenvolvimento do
texto
No capítulo V,
Bachelard se concentra no universo dos invertebrados, se debruçando
especificamente sobre o “elemento”.
Para o autor, a concha
corresponde a lugares seguros, rígidos, onde o poeta não podendo “desenhar”,
reduz falando sobre ela.
A geometria que os
moluscos constroem impressiona por mostrar a vida através de diferentes formas
geométricas.
Na obra de Paul Válery,
interessante olharmos como o poeta olha para o que poucos atentam – como “é a
formação e não a forma que permanece misteriosa” (BACHELARD,
1984, p. 266).
Com Válery talvez
entendamos o lema do molusco que busca “viver para construir sua casa e não
construir sua casa para viver nela” (BACHELARD, 1984, p.267). Com o autor,
percebemos que o mistério da vida, a transformação, acontece de forma lenta e
continuamente.
O fenomenólogo por sua
vez possui dificuldade em vivenciar o conceito de “habitar”, se ficar nas
“seduções das belezas exteriores”. Essa lógica é seguida por conquiliologista
que busca classificar escamas e conchas (BACHELARD, 1984, p. 267).
O interesse do
“observador ingênuo” permite as primeiras experiências e as provocações a
partir de espantos. Questionamos como é “possível que um ser exista vivendo na
pedra, vivendo num pedaço de pedra?” Esses espantos estão se tornando escassos,
mas permite também se perguntar que “para uma concha ‘viva’, quantas conchas
mortas! Para uma concha habitada, quantas conchas vazias?” (BACHELARD, 1984, p.
267).
Se a concha vazia
remete aos devaneios de refúgios, também existe interesse na fenomenologia da
concha habitada.
Aprofundada
posteriormente, Bachelard só pontua nesse capítulo que na imaginação “entrar e
sair são imagens simétricas”. (BACHELARD, 1984, p. 268).
Ao voltar para a
concha, quando olhamos o que sai, devaneios de seres mistos – “meio carne, meio
peixe”; “meio morto, meio vivo, e nos grandes excessos, meio pedra, meio
homem”. Abre-se espaço para não categorizações, e criações como a “Melusina” (BACHELARD,
1984, p. 268).
A partir do mundo
animal, amplia-se a fenomenologia do verbo “sair”. E o homem nesse sentido vive
dessas imagens, “as imagens podem recolocar os verbos em movimento” (BACHELARD, 1984, p. 269).
A concha permite
ampliar o conceito da dialética para além do “pequeno e o grande”, mas para o
“livre e o acorrentado” – o que não espera para ser libertado.
Como Bachelard pontua
brilhantemente, esse capítulo busca-se olhar pela “lente de aumento da
imaginação” o “insignificante” onde estranhas sutilizas são reveladas, como por
exemplo, a saída “molemente do molusco de sua concha, que demonstra a
complexidade de medo e de curiosidade” ao mesmo tempo (BACHELARD, 1984, p. 269).
As imagens das conchas
são evidenciadas na dialética do “escondido e do manifesto” que multiplicam as
experiencias do apenas “abrigar em lugar seguro”. O ser que entra na concha e
prepara para sair pode ser um “ser reprimido”?
Na metodologia da
fenomenologia das imagens, o excesso da imaginação permite acentuarmos a
dialética entre o grande e o pequeno, o escondido e o manifesto, o plácido e o
ofensivo, o fraco e o vigoroso – ao ponto de ultrapassarmos a realidade. Nesse
sentido, a imaginação não trabalha apenas nas imagens, mas no plano das ideias.
Nas “ideias que sonham. Certas teorias, que se acreditam cientificas, são
grandes devaneios, devaneios sem limites.” (BACHELARD, 1984, p. 270).
A vida é coberta por
diferentes proteções, que mesmo esvaindo-se a vida, a “forma” ou a “fôrma” fica
–
“o
ser que tem uma forma domina os milênios. Toda forma guarda uma vida. O fóssil
não é mais simplesmente um ser que viveu, é um ser que vive ainda, adormecido
na sua forma. A concha é um exemplo mais claro de uma vida universal formada em
conchas.” (BACHELARD, 1984, p. 271).
J.B. Robinet, entende
em suas obras que “vida é causadora de formas”, logo “a forma é a habitação da
vida”. (BACHELARD, 1984, p. 272).
Sobre a representação
de órgãos humanos e objetos materializados em conchas e elementos da natureza,
Bachelard busca em Robinet para contrapor a psicanálise e entender que “a
Natureza foi louca antes do homem. E que resposta agradável Robinet haveria de
dar as observações psicanalíticas ou psicológicas para defender seu sistema”.
Segundo as palavras de Robinet “Não devemos ser surpreendidos pela atenção
da Natureza em multiplicar os modelos das partes da geração, tendo em vista a
importância dessas partes”. (BACHELARD,
1984, p. 272).
Bachelard exemplifica
as contradições das conchas, ao mostrar o quanto são rudes externamente, mas
suaves e recobertas de “madre-pérola” em sua intimidade. “Como é possível obter
esse polimento pelo atrito de um ser mole?” Como nas questões da vida, “as
coisas simples são muitas vezes psicologicamente complexas”. (BACHELARD, 1984,
p. 272).
Com a analogia da
“fênix da água” do Abade Vallemont, e outras alegorias ao longo dos tempos, são
frutos e “fatos da imaginação, os fatos positivos do mundo imaginário.” (BACHELARD,
1984, p. 273).
Ao olharmos as conchas,
podemos pensar em nossos corpos e almas, segundo o autor “A simbologia dos antigos
fez da concha o emblema de nosso corpo que encerra num invólucro exterior a
alma que anima o ser por inteiro, representado pelo organismo do molusco. Assim,
disseram eles, como o corpo fica inerte quando a alma se separa dele, da mesma
forma a concha se torna incapaz de se mover quando se separa da parte que a
anima”. (BACHELARD, 1984, p. 273).
Trazendo todos esses
referenciais e imagens sobre a concha, Bachelard alerta para a verificação que
devemos fazer dos “devaneios ingênuos” e que alimentam de certa forma as
“tradições” (BACHELARD, 1984, p. 273).
Retomando a fênix de
Vallemont, “tal contato com uma crença nos leva a origem da crença. Um
simbolismo perdido é reencontrado ao reunir sonhos”. Logo “Se a essas alegorias
e símbolos de ressurreição, juntarmos o caráter sintetizante dos devaneios dos
poderes da matéria, compreenderemos por que os grandes sonhadores não puderam
afastar o sonho da fênix das águas.” (BACHELARD, 1984, p. 273).
Novamente sobre as
ambiguidades e contradições que a concha abriga, Bachelard atenta para
compreendermos fenomenologicamente a fabricação da concha pelo caracol. Um ser
“mole constitui a concha mais dura”. Além disso, traz questionamentos como se
estaria ele numa “prisão de pedra”? Rompendo-se assim a ideia de fortaleza?
Esses devaneios do
homem sobre as conchas de caracol, podem enfim ser concluídas pela análise
final do Abade de Vallemont (loc.cit.pag. 255), são “sublimes motivos de
contemplação para o espírito”. (BACHELARD, 1984, p. 274).
Interessante perceber a
análise de Bachelard sobre Vallemont que não acreditava na fênix de fogo, mas
na fênix da água, que descreve: “É sempre agradável ver um destruidor de fábulas
ser vítima de uma fábula”. (BACHELARD, 1984, p. 274).
E por vezes caímos em
situações como essa. Substituímos nossas crenças em algumas fábulas por outras
fábulas? – Reflexão dos resenhistas.
Novamente Bachelard nos
coloca a pensar sobre os ninhos e as conchas com a ideia que temos de “refúgio”.
Mas nesse refúgio “a vida se concentra, se prepara, se transforma”. (BACHELARD,
1984, p.275).
Temos como ideia a
clássica imagem “banalizada” da “concha-casa”, ao que Bachelard identifica
essas imagens como pertencente ao “museu indestrutível das velharias da
imaginação humana”. (BACHELARD, 1984, p. 276).
Ao mesmo passo que
essas imagens são muito claras, também chegam a “bloquear a imaginação, caindo
no dilema de nos tornarmos vítimas da banalidade (BACHELARD, 1984, p. 276).
Bachelard pontua sobre
a solidão que é habitar nas conchas. O quanto almejamos vidas solitárias ao
proferir frases como “Ah, os caracóis não conhecem sua felicidade” (BACHELARD, 1984, p. 278).
Com outras reflexões, lembramos aqui algumas das discussões apresentadas na
metáfora do “Dilema do porco espinho” do filosofo alemão Arthur Schopenhauer e
que Leandro Karnal, traz em sua obra “Dilema do Porco Espinho: Como encarar a
solidão”.
Quando crianças,
aproximamos nossos ouvidos nas conchas para ouvir as ondas do mar, lugar de
onde deveria ser seu “habitat” natural. Como Bachelard recitando Gaston Puel:
“Minha sombra forma uma
concha sonora
E o poeta escuta seu
passado
Na concha de sombra de
seu corpo”.
(BACHELARD, 1984, p. 278).
Interessante
também perceber que buscamos na vida animal, valores morais, como no exemplo
apresentado por Bachelard, do “eremita-bernardo” buscando conchas abandonadas,
ou do cuco que coloca ovos nos ninhos dos outros (BACHELARD, 1984, p. 279).
Nas
palavras de Bernard Palissy, percebemos a dimensão de seus estudos e a complexidade
que faz nas análises dos caracóis e das conchas (BACHELARD, 1984, p. 280-281).
Bachelard pontua que para não diminuirmos imagens construídas como as de
Palissy, em “simples metáforas”, devemos trabalhar essas imagens pelo jogo da
imaginação ressignificada com outros símbolos imaginativos – como os poetas e
poemas, por exemplo. (BACHELARD, 1984, p. 282).
Para
Palissy o homem busca habitar em conchas. Deseja que “a parede que lhe protege
o ser seja sólida, polida, fechada, como se sua carne sensível tivesse que
tocar nas paredes de sua casa. O devaneio de Bernard Palissy traduz, na ordem
do tato, a função de habitar. A concha confere ao devaneio uma intimidade
completamente física” (BACHELARD, 1984, p. 282).
O
conceito de caverna-concha amplia a dimensão de “cidade fortificada”, de
barreira contra invasores. Amplia a dimensão de habitação, proteção e
esconderijo (BACHELARD, 1984, p. 283).
Falou-se
até aqui então, sobre as conchas, mas Bachelard também pontua, e as carapaças
como das tartarugas? O conceito de casa ambulante seria apenas uma ilustração
das “teses” apresentadas até então nesse capítulo (BACHELARD, 1984, p. 283).
Mesmo
com poucas palavras, viajamos e ampliamos nossa relação imaginativa da
tartaruga nas citações e reflexões de Bachelard sobre o poeta Franz Hellens. O
fenomenólogo pode então analisar diferentes ângulos sobre essa “gravura
comentada” (BACHELARD, 1984, p. 284).
Para
finalizar, Bachelard retoma o início do capítulo ao entender que os
fenomenólogos se complicam quando confrontados com as “estranhezas do mundo”. A
imaginação proporciona no que é familiar, estranhezas. A poética abre na
imaginação um novo mundo. “Uma simples imagem se faz nova, abre um mundo”. Por
o mundo ser mutável a todo momento e a todo instante, se torna um problema que
se renova para fenomenologia. Das palavras de Bachelard captamos que
“Resolvendo
os pequenos problemas, aprendemos a resolver os grandes. Nós nos delimitamos a
propor exercícios no plano de uma fenomenologia elementar. Estamos aliás
convencidos de que não há nada insignificante na psiqué humana.” (BACHELARD,
1984, p. 285).