RESENHA
CRÍTICA DOS CAPÍTULOS 8 E 9 “MINHA PALAVRA VALE O MESMO QUE A SUA: A SIMETRIA
DEMOCRÁTICA”; “DA VIOLÊNCIA À MODERAÇÃO: A PROMESSA DO PROCESSO CIVILIZADOR” |
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Autores da Resenha: |
Cladir
Gava, Mestranda em Patrimônio Cultural e Sociedade pela UNIVILLE |
Referência do Texto: |
Referência
do Texto: BRETON,
Philippe. O elogio da palavra. São Paulo: Edições Loyola, 2006. |
Desenvolvimento do Texto: |
|
A
partir deste movimento iniciado no sentido de desestruturar a hierarquia e as
desigualdades na organização social, foi desencadeada uma nova ordem mundial,
na qual a palavra passou a ter um lugar de excelência. Rompe-se também com o
fatalismo predominante nas sociedades primitivas, desmistificando a ideia de
destino, em proveito da liberdade por meio da palavra: “Não há mais uma lei transcendente,
e sim discussões, decisões coletivas dos cidadãos” (BRETON, 2006, p. 150). Neste
contexto, o homem ideal passou a ser aquele que utiliza a palavra com
propriedade para discutir, argumentar e participar das decisões tomadas no
quadro geral, sendo que “[...] uma palavra equivale a outra, mas na qual
nenhuma palavra equivale à palavra coletiva” (BRETON, 2006, p. 151). Com
isso, o homem passa a ser visto como um ser distinto dos demais seres vivos e
objetos inanimados. Hannah
Arendt (1961 apud BRETON, 2006, p.152) entende a democracia como sendo
“um espaço de aparência do qual ela é apenas a institucionalização”. Assim, a
sociedade democrática se caracteriza pela palavra e ação conjunta dos homens,
que precedem a constituição formal do domínio público e das formas de
governo. Com o advento da democracia, evidencia-se também a retórica, a arte
de convencer e foi iniciada uma reflexão específica e sistemática sobre a
palavra. Contudo, havia a preocupação de que a retórica poderia ser usada
como instrumento de poder pela sua capacidade de manipular a palavra. Surge assim
um impasse a partir de dois pontos centrais: o primeiro é que, em se tratando
de uma sociedade democrática, a prática da retórica somente tem sentido se produzir
concretamente um vínculo social igualitário e, segundo, os valores existentes
em seu âmago devem ser difundidos sob a forma de um ideal para toda a
sociedade, pois são antagônicos à ideia de dominação. A
partir disso, Breton (2006, p. 153) afirma que a retórica “é uma seleção, de
acordo com as possibilidades que ela oferece, daquilo que pode constituir um
novo uso da palavra, igualitário, pacificador, desenvolvedor para a pessoa no
sentido de lhe oferecer os meios para aparecer diante dos outros como
pessoa”. Por tratar-se de um igualizador da palavra, a retórica tem uma
função essencial na democracia. Ele faz referência a Aristóteles, que inicia
a sua Retórica propondo que seus interlocutores refletissem sobre o que é
possível fazer e o que não se deve fazer com a palavra. Para Barthes (1970 apud
BRETON, 2006, p. 153) a retórica “também é uma moral, uma moralização da
palavra, que implica certas renúncias [...] a retórica é uma metalinguagem
que toma a palavra como objeto”. Com
a ruptura democrática, segundo Breton (2006, p. 156) a palavra adquiriu “um
novo estatuto”, pois não mais se limitava ao “exercício de um poder
particular”. Com isso, passou-se a diferenciar o seu uso como opinião da sua
utilização para descrever algo. Naquele contexto, os sofistas, que pretendiam
ter um saber sobre a palavra, passaram a fazer suas observações. A sociedade
grega escravagista não é o ideal do ponto de vista das desigualdades, mas
abre espaço para o exercício da igualdade. A democracia grega não suportava a
desigualdade diante da palavra, inventando uma espécie de ensino da palavra.
Na retórica, são ensinadas técnicas de memória artificial para que as pessoas
fossem postas no mesmo nível. Ocorre uma nova relação com a palavra por meio do
aperfeiçoamento da escrita alfabética representada pela notação completa dos
sons. Mas a retórica é inicialmente uma reflexão sobre a palavra oral e
somente após vários séculos, com Quintiliano, ela passará a ser empreendida
na palavra escrita. Após destacaram-se os estudos de Roland Barthes, com
grande influência na cultura ocidental e Foucault, sendo que a partir do
século XVII o discurso passa a ser objeto da linguagem. Enquanto a
linguística se ocupa da parte nobre da língua, esta “reviravolta retórica
implica um novo olhar sobre a palavra e sua articulação com os meios de
comunicação, entre os quais as línguas orais” (BRETON, 2006, p. 157). A
partir deste contexto, Breton (2006) discute uma tripla ruptura para a
compreensão do novo estatuto da palavra. Nesta perspectiva, o autor propõe
uma análise de uma relação triangular, cuja base é a democracia e cujos lados
são formados pela nova relação com a violência e pelo novo lugar assumido
pelo indivíduo. A ruptura democrática desencadeou a renúncia aos métodos
tradicionais de tomada de decisão e aos métodos tirânicos próprios do sistema
palaciano. Porém, os princípios da retórica foram redescobertos em períodos
históricos muito tempo após o período grego, nos quais o regime não era
democrático. Norbert Elias (apud Breton, 2006) identificou o processo de
pacificação dos costumes no regime monárquico francês. A partir do
pressuposto de que, por meio da retórica foi redescoberta uma prática
concreta da democracia, é importante analisar como este vínculo se manifesta
entre a violência e a palavra em um quadro não democrático. Também é
relevante estudar os vínculos entre o desenvolvimento do individualismo nas
sociedades modernas e contemporâneas. No
capítulo 9 - “Da violência à moderação: a promessa do processo civilizador”,
Breton (2006, p. 161) propõe a ideia de que o caminho seguido pela palavra
tem sido “uma alternativa concreta à violência”, considerando a sua
trajetória no processo de hominização e depois nas grandes transformações
culturais e sociais. A violência civil e a das guerras, mesmo se for
considerado o decréscimo de vítimas em conflitos armados, são processos
característicos tanto nas sociedades primitivas quanto nas nossas e essa é
uma das grandes preocupações humanas há muito tempo. Em
cada contexto histórico, cada sociedade dispõe de um sistema de normas que
enquadram o uso da violência, em busca “do ideal de uma sociedade em seja
mais fácil viver”. “[...] Essas normas são variáveis e evoluíram no sentido
de uma intolerância cada vez maior à violência” (BRETON 2006, p. 162). Determinadas
sociedades procuram mudar as normativas sobre o nível de violência aceitável,
como é o caso dos redatores do Antigo Testamento, as leis de Moisés, dentre
as quais se inclui “Não prestarás falso testemunho”, pois a mentira seria uma
palavra violenta. São normas de vida em sociedade e imperativos morais que
visam amenizar um jogo considerado muito violento. Contudo, por si só não são
suficientes para romper o ciclo de violência, sendo necessárias mudanças
sociais para instituir normas restritivas e aceitas pela maioria. Foi com
este propósito que os antigos gregos estabeleceram uma sociedade democrática,
articulando-se em torno de uma nova relação com a palavra: do estatuto da
palavra do poder a um poder compartilhado. A
busca pelo fim da violência, segundo Jacqueline de Romilly (apud BRETON,
2006, p. 165) “se manifestou em dois momentos sucessivos: a descoberta da
justiça e a descoberta da moderação”. Foi assim que se deu a
institucionalização do tribunal na nova justiça grega, com um substituto
possível à vingança e à guerra. A nova justiça ligava-se ao processo de
difração da palavra no qual a opinião se apoia no fato (objetivação da
palavra). No mundo grego, tomar a palavra, passou a ser um dever cívico. Com
isso, há um princípio de pacificação nas relações sociais por meio da palavra
para interromper o autoritarismo, trazendo, de modo matriarcal, o instituto
da palavra do qual somos herdeiros, pois “a palavra moderna é tomada em uma
matriz justiciária” (BRETON 2006, p. 166). Após
o Império Romano e a Idade Média Ocidental terem inserido novamente a
violência arcaica como questão social, diante das novas exigências de
pacificação, o ideal pacificador grego por meio da palavra é redescoberto, em
certa medida, pelos humanistas do Renascimento. Essa vontade nova e imperiosa
de civilidade manifestada em certos meios emergiu diante do cenário de
violência marcado por maus-tratos, torturas, brigas e guerras, cenário esse
ainda observado em vastas regiões do mundo. De
acordo com Elias (apud BRETON, 2006), a partir das mudanças sociais e
culturais emerge um novo homem, que busca renunciar à agressão, comportar-se
com pudor, aceitar a separação em relação aos outros, enfim, colocar suas
emoções em palavras. Breton entende que, com isso, amplia-se o espaço da
tomada da palavra, sua importância social e a própria linguagem se civiliza e
se pacifica. Há um progresso da criminalização, ainda que lento, dos
comportamentos violentos tendo, como indica Muchembled (apud BRETON, 2006), a
justiça como produtora do vínculo social. No
processo civilizador herdado por várias sociedades, dentre as quais a maior
parte dos países ocidentais, há uma ruptura em relação às normas antigas de
violência. A objetivação das emoções graças à palavra passa a ser um espaço
de aparência com poder atualizado, implicando uma transformação progressiva
de certos costumes, enquadrando a violência em normas sociais precisas. Tais
normas implicam o deslocamento da violência à civilização, no qual as regras
da retórica e do bem viver são adaptadas às circunstâncias. Os recursos da
argumentação são mobilizados, sendo que para atingir a verdadeira natureza
humana, é preciso também escutar o outro, o que remete ao ideal de simetria
da revolução democrática grega no qual o poder da palavra tende a substituir
a palavra do poder. A desigualdade é vista como fonte de violência social e a
civilidade, com base na palavra, tem a força de perturbar essas estruturas
não-igualitárias. Essa
evolução caminha juntamente com uma transformação interna do exercício da
palavra chegando ao despertar da retórica na nova civilidade, no qual são
retomadas e desenvolvidas ao menos duas formas: a argumentativa e a
informativa. A argumentação adquire grande importância na organização de
debates que se caracterizam pela mistura de cerimônia e conversação, que
seguem um rígido protocolo. Contudo, segundo Betron (2006, p. 178) esse ideal
se concretizou “sob o duplo efeito da progressão das normas sociais que
enquadram a violência e da criminalização bem-sucedida da violência civil
[...] essa ruptura talvez não se tenha dado em profundidade”. A um menor
relaxamento das leis, tem-se o risco de retornar a um estágio anterior. Ainda
assim, o processo de pacificação dos costumes serve de referência sobre como
a violência pode recuar, principalmente a partir de um novo uso da palavra.
Neste sentido, a ideia defendida pelo autor é de que a civilidade e a polidez
são “a matriz do processo de objetivação que é essencial ao recuo da
violência”. Estes estudos adquirem relevância não somente para uma melhor
compreensão dos processos históricos que desencadearam a busca pela
democracia e do papel significativo que a palavra tem nas relações sociais,
como também para a análise sobre como se articulam estas relações nas
sociedades contemporâneas. |
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Observações: |
: Democracia.
Palavra. Civilidade. |
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