Resenha crítica dos capítulos VI e VII (BACHELARD)

Capítulo VI “Os cantos”

Capítulo VII “A miniatura”

 

Rita de Cássia Fraga da Costa¹

 

APRESENTAÇÃO DA OBRA E DO AUTOR

BACHELARD, Gaston. Os cantos. In: BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 286 – 293. (Os pensadores)

 

BACHELARD, Gaston. A miniatura. In: BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 294 – 315. (Os pensadores)

  

* Nasceu em 27/06/1884, Bar-sur-Aube, França e faleceu em 16/10/1962, Paris, França. Filósofo e poeta, suas questões estão centradas na Filosofia da Ciência. Sempre foi um professor, com carreira na Faculdade de Dijon e, mais tarde (1940), na Sorbonne. Ingressou na Academia das Ciências Morais e Políticas da França (1955) e foi laureado com o Grande Prêmio Nacional de Letras (1961). Bachelard destacou-se por sua contribuição à psicologia clínica, com à fenomenologia, especialmente a partir de sua obra "Poética do espaço" (1957).

 

BACHELARD E A FENOMENOLOGIA

 

Bachelard enfoca o sujeito da pesquisa, o matemático, o físico, o cientista, a relação do sujeito da teoria científica com o mundo numa busca fenomenológica por determinar as essências checou que a filosofia   e a ciência  não se instituem como fórmulas de todos os modos de conhecimento e de relações com o mundo. Ao estabelecer analogias sobre a consciência da racionalidade de um saber, Bachelard considerou a intencionalidade empírica (o estado vivo das coisas captado pela percepção/sensação) e o ocasionismo do despertar dessa consciência (uma dose de autocrítica/racionalismo).

Para o estudioso a arquitetura do conhecimento é atualizada e formada pela dupla relação sujeito/objeto, em que a percepção é imediata e o conhecimento provém de uma segunda instância mediada com a razão. Assim, perscrutando estas inter-relações, Bachelard provou da experiência do mundo na busca de alcançar a ciência do mundo.

Em resumo, a teoria bachelardiana se desenvolve sobre um corpo científico formado por seu desejo de saber em busca pela verdade, no acompanhar do ato construtivo do conhecimento humano. Do compromisso racionalista e igual engajamento filosófico, o autor alcança a liberdade estética, em sua pessoal e evidente assunção poética das percepções e sentimentos primeiros do ser (ARAÚJO[1], 2002).

 

A OBRA

            A ‘Poética do Espaço’ é um ensaio publicado por Gaston Bachelard, em 1957. Nesta fase, seu discurso poético-estético sobrepõe o cientifico-ético, gerando uma obra que trouxe expressiva contribuição para a fenomenologia da imaginação.

Bachelard (1978, p. 196), no início do texto, anuncia que “a imaginação imagina incessantemente e se enriquece de novas imagens. É essa riqueza do ser imaginado que queremos explorar”. Assim, é dessa matéria que o autor vai trazer à tona a sua pesquisa das imagens da intimidade. Em uma poética da casa, como já havia elaborado Jung à psicanálise, no ensaio "Le conditionnement terrestre de l'âme", Bachelard segue pelos espaços da casa para explorar a alma humana.

Os espaços da casa, do porão, do sótão, da cabana, da gaveta, do cofre, do armário, do ninho, da concha, dos cantos e as miniaturas são imagens lançadas por Bachelard para tratar de temas recorrentes na literatura, em a ‘Poética do Espaço”.

 

O CAPÍTULO VI

Após percorrer outros espaços em busca de conhecer as imagens[2] em sua essência, Bachelard (1978, p. 286) aborda, no capítulo VI, “as impressões de intimidades [...] com uma raiz mais humana”, uma visagem dos cantos. 

Da imagem do canto, Bachelard (1978, p. 286) afirma as possibilidades de a imaginação que (trans)forma um ângulo, um espaço de um germe de casa ou um retiro de solidão. O canto que é “negação do universo” reprime a vida. O canto é o espaço de vida reprimida, vida negada, em que não ecoa falas e, portanto, conserva o silêncio. Espaço aparentemente pobre, no qual Bachelard (1978, p. 287) averigua as imagens primitivas, imagens de uma antiguidade, pois, “muitas vezes, quanto mais simples são as imagens, maiores são os sonhos”.

Um refúgio em que os devaneios se multiplicam facilmente e logo o solitário canto é todo o espaço do ser. Meio aberto e meio fechado, tem estrutura dialética. Mais ainda, são nos exemplos, nas infâncias ingênuas e inventadas dos romances que o autor vai selecionar registros de devaneios tão potentes que poderiam influir as pesquisas fenomenológicas.

O autor medita sobre as palavras do romance de Milosz. Encontra nos cantos das histórias narradas o espaço reservado à meditação do ser. Bachelard (1978, p. 289) escreve “todos os habitantes dos cantos virão dar vida à imagem, multiplicar todos os matizes de ser do habitante dos cantos [...]” entre sonhos tristes e felizes, neste devaneio os frequentadores dos cantos encontrarão seus objetos de memória, objetos esquecidos, deixados para trás e talvez outros reencontrados.

Bachelard (1978, p. 290) constata que “o canto se transforma num armário de recordações”. Sonhadores de uma memória tão longínqua que são pensadas como inexistências. O habitante dos cantos permite-se a viver uma errância, desabastecido de certezas para (re)encontrar, talvez, suas verdades. Os cantos das (im)possibilidades. São estas as reflexões do autor, na dimensão mais atroz do devaneio daquele que se imobiliza no canto.

Nos cantos o sonhador aprende “[...] parece que conhece o repouso intermediário entre o ser e o não ser”. Encontrar a vida e as emoções nos traços, nas linhas, dos cantos imagináveis. Bachelard (1978, p. 293) afirma “uma ambiência nova permite à palavra entrar não só nos pensamentos, mas também nos devaneios. A linguagem sonha.”.

 

O CAPÍTULO VII

Capítulo aborda as imagens das miniaturas, as pequenas casas tomadas pelos poetas, na literatura. Espaços em que o sonho é o movente, em que “é preciso crer para fazer crer”, para vasculhar as inversões de grandezas que acumulam no interior das miniaturas desafios em espaços grandiosos. (BACHELARD, 1978, p. 294). Constata que os valores no pequeno se condensam, exigindo que ultrapassemos a lógica para acompanhar o sonho, com isso, o autor destaca que as miniaturas literárias ativam profundos valores.

Acolhida onírica que apresenta dificuldades na recepção dos valores, pois não sonhamos como pensamos. Sustamos o devaneio quando o descrevemos. Para sustentar a imaginação devemos alimentá-la com imagens e não confrontar as imagens. Bachelard (1978, p. 297) fala da “imagem absoluta, que se completa em si mesma”, esta imagem gerativa da imaginação, imagem que não nasce no pensamento.

O autor já havia, em outros pontos da obra, advertido sobre o poder do adjetivo[3] quando este está em relação à vida, e neste espaço da miniatura, Bachelard encontra auxílio nas descrições da botânica, em que a imaginação vem perfumada de vida em uma grande gama de adjetivos que elucidam minúsculas folhas e flores.

A imagem do texto do poeta ou do botânico não revela a realidade, ambos os autores desta escrita que eclode de uma viagem pela miniatura, ingressam no interior da imaginação e “tomam o mundo como uma novidade” para alimentarem e percorrerem seus espaços (BACHELARD, 1978, p. 298). São documentos literários, produtos da imaginação, “realidade da imaginação”, como escreve Bachelard (1978, p. 300) produz uma imagem exagerada, droga eficaz que nos mantém (leitores) contagiados pela imaginação.

Para a manutenção do devaneio, voltemos à dialética das grandezas quando o autor nos orienta à indispensável grandeza da perspicácia do filósofo intuicionista que capta tudo com um único olhar, confrontada pela necessária ‘contemplação da miniatura, [em que] é preciso uma atenção perspicaz para integrar o detalhe” (BACHELARD, 1978, p. 301). São todos pequenos devaneios em que o poeta consegue nos manter em um espaço de além-mundo (uma memória imemorial).

 “Todas as coisas pequenas pedem vagar”, alerta Bachelard (1978, p. 301) mesmo quando não conseguimos acompanhar as imagens excessivas de certa apresentação é possível nos contagiar pela imaginação do poeta. Entre o ser no mundo do filósofo e o ser do poeta miniaturizado, Bachelard nos aproxima do poeta, porque podemos acompanhar as imagens e sentir a vida por elas. Posição que nos coloca sobre mundos de ambiências dominadas. Ainda, também, há o desafio de uma grandeza no interior destes seres miniaturizados, a exemplo de o pequeno polegar e o cavalo, quando o personagem convida a nossa imaginação a ouvir (a miniatura do som).

O poeta garante imobilidade às imagens, “[...] está sempre pronto para ler o grande e o pequeno” (BACHELARD, 1978, p. 309).  Através do distante e do próximo, do baixo e do alto, Bachelard percorre pelas imagens e suas diferentes posições em uma vasta topoanálise para, ao final, realçar o poeta que cria imagens. Imagens que não têm interesse em se deixar medir ou se fixar em determinadas grandezas.

As miniaturas têm uma fina ligação com a percepção e, além da escuta, na miniatura do sonoro, invadem outros sentidos. Assim, de uma superficial e fina camada de imagens poéticas (a nascente das imagens), na reflexão sobre o ver, o escutar e nossos sentidos, Bachelard nos leva às múltiplas análises sobre as suas derivadas vibrações no ser, destacando o ouvido que dispensa os olhos indo ao fundo do ser e, por vezes, alcança a escuta no silêncio profundo de seu interior.

 

REFLEXÕES SOBRE A OBRA

Os capítulos de “A poética do espaço” seguem um discreto encadeamento, em que Bachelard analisa imagens que recebemos em transmissões felizes e reações na mente humana. Como autor da fenomenologia, Bachelard (1978, p. 183) reflete sobre a relação do homem com as imagens de seu universo, e nesta “essencial novidade psíquica do poema”, desenvolve uma filosofia da poesia, que reconhece a criação de uma imagem e sua propagação. Vasculha as imagens da origem do ser falante até a repercussão na alma do leitor-ouvinte.

A memória surge neste núcleo criativo, pessoal e intransponível do ato poético. Um ato sem passado. “Toda memória está para ser reimaginada. Temos na memória microfilmes que não podem ser lidos senão quando recebem a luz viva da imaginação” (BACHELARD, 1978, p. 311). Com isso, “O poeta, na novidade de suas imagens, é sempre origem da linguagem” (BACHELARD, 1978, p. 185).

Em ‘os cantos’ e ‘as miniaturas’ o autor percorre os espaços da alma humana até adentrar nos valores destes espaços. Das simples imagens dos cantos estão as aberturas para o despertar para imagens maiores. Este canto, espaço de encontro conosco mesmo, para Bachelard (1978) é o germe de uma casa.   

Em ‘as miniaturas’ e suas conflitantes grandezas matemáticas, Bachelard lança a frase de Schopenhauer: “o mundo é a minha imaginação” (1978, p. 295). Da reflexão dos personagens literários miniaturizados, o autor nos leva ao entendimento da imagem literária e, com isso, à compreensão de que os poemas são documentos da realidade imaginária humana, que alimentam nossa condição de sustentar a viagem pelo universo da imensidão poética.

 

¹ Doutoranda em Patrimônio Cultural e Sociedade – Turma I da UNIVILLE. Bolsista CAPES/PROSUC. Integrante do Grupo de Estudos Imbricamentos de Linguagens.



[1] ARAÚJO, Joaquim Carlos. A Fenomenologia Científica de Bachelard. Phainomenon, 2002, n.º 4, Lisboa, Edições Colibri, p. 51-90.

[2] Imagens são “[...] um dos fenômenos específicos do ser falante”, produções que vem do interior da imaginação absoluta (BACHELARD, 1978, p. 245)

[3] Bachelard (1978, p. 291) escreve “poderemos dar este conselho: para encontrar a essência de uma filosofia do mundo procure-lhe o adjetivo”. 

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