O ESQUECIMENTO IMPOSSÍVEL -RESENHA CRÍTICA

O ESQUECIMENTO IMPOSSÍVEL -RESENHA CRÍTICA
Autores da Resenha:
Ian Pogan
Referência do Texto:
VATTIMO, Gianni. O esquecimento impossível. In. YERUSHALMI, Y. et. al. Usos do Esquecimento: Conferências proferidas no colóquio de Royaumont. Campinas: Ed. Unicamp. 2017, p.99-115
Desenvolvimento do Texto:
As discussões quanto ao esquecimento talhado no devir de um século, revela profundamente sobre o legado do ser humano, de suas ideias e traumas. Vattimo, assim como nós, tem o corpo marcado pela impossibilidade do esquecimento. Esta premissa tem significativa espessura histórica, Gianni vale-se de Nietzsche e Heidegger[1] neste debate, e apresenta como esquecimento em certa medida foi e é um sintoma de como a humanidade trata de sua condição.
 A segunda metade do Século XIX foi o período áureo da Era Moderna, a consolidação do conhecimento científico que vinha superando em poucos anos, desafios que pareciam eternos, invenções de toda ordem…  o futuro aproximava-se cada vez mais do presente, e concomitante diminuía as distâncias com o passado[2]. A história teve papel-chave nisso, desde a promoção e legitimação simbólica dos emergentes Estados-Nação, o surgimento de inúmeras instituições de caráter memorialista e histórico, como museus, arquivos e mesmo a estruturação da história como Ciência acadêmica[3], não a toa que o Século XIX foi chamado de: “Século da História”[4]. Com o passado tão evidente, o futuro e sua sorte estariam comprometidos, assim como a possibilidade do “novo” do “original” aparecer, essa era a preocupação de Nietzsche. Em seu texto[5] defendia que o passado deveria somente ser evocado às necessidades práticas, não como elemento mercadológico (valendo-se como atração) ou demagógico (de uso das elites) e docilizador das massas. Aqui, o esquecimento teria uma função de prover o rompimento dessa ordem, buscando a superação do Homem[i].
Influenciado por Nietzsche, Heidegger cunha um outro olhar sobre o esquecimento. Segundo ele, seria inevitável e intrínseco do ser o ato de rememorar. Deste modo, poderia a partir deste haver um processo de descoberta e consigo de uma superação. Em certa medida, esses dois filósofos (Nietzsche e Heidegger) são o sintoma e anúncio do fim (melancólico) do mundo moderno, que veio consolidar-se na primeira metade do século XX, com inúmeros eventos traumáticos tendo destaque, as duas guerras mundiais e os regimes totalitários, que postularam definitivamente não só a impossibilidade do esquecimento, mas o perigo em que a Humanidade corria ao esquecer o passado[ii]. As forças eternizantes da qual Nietzsche discorria como um caminho para a superação do tempo histórico, deu-se na prática por outro campo: a arte do pós-guerra - que encabeçou superação de paradigmas propostos pelos dois filósofos. Em verdade, a combinação de arte, mercado e mídia, gerou rompimento definitivo com o mundo Moderno. Baseadas nas diversas apropriações desses diferentes campos, a arte contemporânea não mais orbitava no campo estético, mas sim no campo da linguagem. Sem mais reportar sua condição à uma perspectiva teológica e utópica e mesmo da necessidade de vanguardas intelectuais, que vinham suprir o esgotamento de movimentos anteriores. A arte passava a ser entendida como elemento pluralistas. Utopias passaram a serem substituídas por heterotopias, ou seja sem mais a busca de um único objetivo, uniforme, único, mas da possibilidade de inúmeros espaços e objetivos.  Definia-se um mundo não mais de essências ou de forças metafísicas, mas um mundo de representações. As apropriações do passado tornaram-se múltiplas e feitas por diferentes sujeitos e de inúmeras formas, criando um novo mundo de possibilidades. Talvez algo em que Heidegger projetava como sua ideia de “descoberta”. O esquecimento é impossível na medida em que o passado ele está cada vez mais próximo do presente[6], assim, a questão não é mais quanto ao esquecimento, mas das complexidades do lembrar e as perdas nesse devir.

Referências:
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232

BOURDÉ Guy; Hervé MARTIN. As Escolas Históricas. Lisboa: Publicações Europa-América. 1983

CONCEIÇÃO, Lívia Beatriz da. Em tempos de ‘fermentação nascente’: uma leitura dos projetos para a instrução pública primária do personagem François Guizot (1832-1836). Rev. Bras.. Hist. Educ. vol.20  Maringá  2020. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2238-00942020000100205  > Acesso em: 23/06/2020

HARTOG, François. Tempo, História e a Escrita da história: A ordem do tempo. Revista de História. n.148, 2003, p.9-34

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Estudos sobre História. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. Tradução de André Luís Mota Itaparica. São Paulo: Hedra, 2017


Observações:
[1]Sintomático a operação da qual Vattimo discorre no texto com base no pensamento desses dois filósofos. Ambos foram apropriados ou tiveram relação explícita em eventos traumáticos (em especial Heidegger e sua relação com o Regime Nazista na Alemanha). N.A.
2 Ver KOSELLECK. 2014 p.121-205
3 Ver BOURDÉ, MARTIN. 1983, p.82-118
4 Como exemplo da importância da história para a legitimação dos Estados Modernos, François Guizot quando ministro na França instituiu a história como ensino obrigatório nacional - “Feita a França, agora seria necessário fazer os franceses” (CONCEIÇÃO. 2020)
5NIETZSCHE.  2017
6 Übermensch, do alemão, conceito cunhado por Nietzsche. N.A.
7 Aqui faz-se necessário lembrar das teses sobre História de Walter Benjamin, em especial a 9a Tese, quando ele discorre: “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (BENJAMIN. 1987, p.226)
8 Recorro ao historiador francês François Hartog quanto ao presentismo e aos processo de aceleração do tempo histórico. (HARTOG. 2003)

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