Resenha crítica dos capítulos 8 e 9 do livro "O elogio da palavra", de Phillipe Breton

 

RESENHA CRÍTICA DOS CAPÍTULOS 8 E 9 “MINHA PALAVRA VALE O MESMO QUE A SUA: A SIMETRIA DEMOCRÁTICA”; “DA VIOLÊNCIA À MODERAÇÃO: A PROMESSA DO PROCESSO CIVILIZADOR”

Autores da Resenha:

Cladir Gava, Mestranda em Patrimônio Cultural e Sociedade pela UNIVILLE

Referência do Texto:

Referência do Texto: BRETON, Philippe. O elogio da palavra. São Paulo: Edições Loyola, 2006.

Desenvolvimento do Texto:


Nos capítulos 8 e 9 do livro “O elogio da palavra”, Philippe Breton apresenta uma contextualização sobre o advento de uma nova relação do ser humano com a palavra a partir da revolução democrática grega e analisa as influências desse processo histórico nas sociedades posteriores, incluindo as sociedades ocidentais contemporâneas. No capítulo 8, “Minha palavra vale o mesmo que a sua: a simetria democrática” Breton inicialmente aborda a revolução pela democracia na Grécia, desencadeada por meio da dupla ruptura com a organização social primitiva e com a lembrança da civilização micênica do tipo palaciana. A “revolução das mentes”, entre os séculos VIII e VII a.  C., foi articulada pela representação do cosmos orientado pela igualdade e pela simetria, tendo como referência a lei de equilíbrio e de constante reciprocidade.

A partir deste movimento iniciado no sentido de desestruturar a hierarquia e as desigualdades na organização social, foi desencadeada uma nova ordem mundial, na qual a palavra passou a ter um lugar de excelência. Rompe-se também com o fatalismo predominante nas sociedades primitivas, desmistificando a ideia de destino, em proveito da liberdade por meio da palavra: “Não há mais uma lei transcendente, e sim discussões, decisões coletivas dos cidadãos” (BRETON, 2006, p. 150). Neste contexto, o homem ideal passou a ser aquele que utiliza a palavra com propriedade para discutir, argumentar e participar das decisões tomadas no quadro geral, sendo que “[...] uma palavra equivale a outra, mas na qual nenhuma palavra equivale à palavra coletiva” (BRETON, 2006, p. 151). Com isso, o homem passa a ser visto como um ser distinto dos demais seres vivos e objetos inanimados.

Hannah Arendt (1961 apud BRETON, 2006, p.152) entende a democracia como sendo “um espaço de aparência do qual ela é apenas a institucionalização”. Assim, a sociedade democrática se caracteriza pela palavra e ação conjunta dos homens, que precedem a constituição formal do domínio público e das formas de governo. Com o advento da democracia, evidencia-se também a retórica, a arte de convencer e foi iniciada uma reflexão específica e sistemática sobre a palavra. Contudo, havia a preocupação de que a retórica poderia ser usada como instrumento de poder pela sua capacidade de manipular a palavra. Surge assim um impasse a partir de dois pontos centrais: o primeiro é que, em se tratando de uma sociedade democrática, a prática da retórica somente tem sentido se produzir concretamente um vínculo social igualitário e, segundo, os valores existentes em seu âmago devem ser difundidos sob a forma de um ideal para toda a sociedade, pois são antagônicos à ideia de dominação.

A partir disso, Breton (2006, p. 153) afirma que a retórica “é uma seleção, de acordo com as possibilidades que ela oferece, daquilo que pode constituir um novo uso da palavra, igualitário, pacificador, desenvolvedor para a pessoa no sentido de lhe oferecer os meios para aparecer diante dos outros como pessoa”. Por tratar-se de um igualizador da palavra, a retórica tem uma função essencial na democracia. Ele faz referência a Aristóteles, que inicia a sua Retórica propondo que seus interlocutores refletissem sobre o que é possível fazer e o que não se deve fazer com a palavra. Para Barthes (1970 apud BRETON, 2006, p. 153) a retórica “também é uma moral, uma moralização da palavra, que implica certas renúncias [...] a retórica é uma metalinguagem que toma a palavra como objeto”.

Com a ruptura democrática, segundo Breton (2006, p. 156) a palavra adquiriu “um novo estatuto”, pois não mais se limitava ao “exercício de um poder particular”. Com isso, passou-se a diferenciar o seu uso como opinião da sua utilização para descrever algo. Naquele contexto, os sofistas, que pretendiam ter um saber sobre a palavra, passaram a fazer suas observações. A sociedade grega escravagista não é o ideal do ponto de vista das desigualdades, mas abre espaço para o exercício da igualdade. A democracia grega não suportava a desigualdade diante da palavra, inventando uma espécie de ensino da palavra. Na retórica, são ensinadas técnicas de memória artificial para que as pessoas fossem postas no mesmo nível. Ocorre uma nova relação com a palavra por meio do aperfeiçoamento da escrita alfabética representada pela notação completa dos sons. Mas a retórica é inicialmente uma reflexão sobre a palavra oral e somente após vários séculos, com Quintiliano, ela passará a ser empreendida na palavra escrita. Após destacaram-se os estudos de Roland Barthes, com grande influência na cultura ocidental e Foucault, sendo que a partir do século XVII o discurso passa a ser objeto da linguagem. Enquanto a linguística se ocupa da parte nobre da língua, esta “reviravolta retórica implica um novo olhar sobre a palavra e sua articulação com os meios de comunicação, entre os quais as línguas orais” (BRETON, 2006, p. 157).

A partir deste contexto, Breton (2006) discute uma tripla ruptura para a compreensão do novo estatuto da palavra. Nesta perspectiva, o autor propõe uma análise de uma relação triangular, cuja base é a democracia e cujos lados são formados pela nova relação com a violência e pelo novo lugar assumido pelo indivíduo. A ruptura democrática desencadeou a renúncia aos métodos tradicionais de tomada de decisão e aos métodos tirânicos próprios do sistema palaciano. Porém, os princípios da retórica foram redescobertos em períodos históricos muito tempo após o período grego, nos quais o regime não era democrático. Norbert Elias (apud Breton, 2006) identificou o processo de pacificação dos costumes no regime monárquico francês. A partir do pressuposto de que, por meio da retórica foi redescoberta uma prática concreta da democracia, é importante analisar como este vínculo se manifesta entre a violência e a palavra em um quadro não democrático. Também é relevante estudar os vínculos entre o desenvolvimento do individualismo nas sociedades modernas e contemporâneas.

No capítulo 9 - “Da violência à moderação: a promessa do processo civilizador”, Breton (2006, p. 161) propõe a ideia de que o caminho seguido pela palavra tem sido “uma alternativa concreta à violência”, considerando a sua trajetória no processo de hominização e depois nas grandes transformações culturais e sociais. A violência civil e a das guerras, mesmo se for considerado o decréscimo de vítimas em conflitos armados, são processos característicos tanto nas sociedades primitivas quanto nas nossas e essa é uma das grandes preocupações humanas há muito tempo.

Em cada contexto histórico, cada sociedade dispõe de um sistema de normas que enquadram o uso da violência, em busca “do ideal de uma sociedade em seja mais fácil viver”. “[...] Essas normas são variáveis e evoluíram no sentido de uma intolerância cada vez maior à violência” (BRETON 2006, p. 162). Determinadas sociedades procuram mudar as normativas sobre o nível de violência aceitável, como é o caso dos redatores do Antigo Testamento, as leis de Moisés, dentre as quais se inclui “Não prestarás falso testemunho”, pois a mentira seria uma palavra violenta. São normas de vida em sociedade e imperativos morais que visam amenizar um jogo considerado muito violento. Contudo, por si só não são suficientes para romper o ciclo de violência, sendo necessárias mudanças sociais para instituir normas restritivas e aceitas pela maioria. Foi com este propósito que os antigos gregos estabeleceram uma sociedade democrática, articulando-se em torno de uma nova relação com a palavra: do estatuto da palavra do poder a um poder compartilhado.

A busca pelo fim da violência, segundo Jacqueline de Romilly (apud BRETON, 2006, p. 165) “se manifestou em dois momentos sucessivos: a descoberta da justiça e a descoberta da moderação”. Foi assim que se deu a institucionalização do tribunal na nova justiça grega, com um substituto possível à vingança e à guerra. A nova justiça ligava-se ao processo de difração da palavra no qual a opinião se apoia no fato (objetivação da palavra). No mundo grego, tomar a palavra, passou a ser um dever cívico. Com isso, há um princípio de pacificação nas relações sociais por meio da palavra para interromper o autoritarismo, trazendo, de modo matriarcal, o instituto da palavra do qual somos herdeiros, pois “a palavra moderna é tomada em uma matriz justiciária” (BRETON 2006, p. 166).

Após o Império Romano e a Idade Média Ocidental terem inserido novamente a violência arcaica como questão social, diante das novas exigências de pacificação, o ideal pacificador grego por meio da palavra é redescoberto, em certa medida, pelos humanistas do Renascimento. Essa vontade nova e imperiosa de civilidade manifestada em certos meios emergiu diante do cenário de violência marcado por maus-tratos, torturas, brigas e guerras, cenário esse ainda observado em vastas regiões do mundo.   

De acordo com Elias (apud BRETON, 2006), a partir das mudanças sociais e culturais emerge um novo homem, que busca renunciar à agressão, comportar-se com pudor, aceitar a separação em relação aos outros, enfim, colocar suas emoções em palavras. Breton entende que, com isso, amplia-se o espaço da tomada da palavra, sua importância social e a própria linguagem se civiliza e se pacifica. Há um progresso da criminalização, ainda que lento, dos comportamentos violentos tendo, como indica Muchembled (apud BRETON, 2006), a justiça como produtora do vínculo social.

No processo civilizador herdado por várias sociedades, dentre as quais a maior parte dos países ocidentais, há uma ruptura em relação às normas antigas de violência. A objetivação das emoções graças à palavra passa a ser um espaço de aparência com poder atualizado, implicando uma transformação progressiva de certos costumes, enquadrando a violência em normas sociais precisas. Tais normas implicam o deslocamento da violência à civilização, no qual as regras da retórica e do bem viver são adaptadas às circunstâncias. Os recursos da argumentação são mobilizados, sendo que para atingir a verdadeira natureza humana, é preciso também escutar o outro, o que remete ao ideal de simetria da revolução democrática grega no qual o poder da palavra tende a substituir a palavra do poder. A desigualdade é vista como fonte de violência social e a civilidade, com base na palavra, tem a força de perturbar essas estruturas não-igualitárias.

Essa evolução caminha juntamente com uma transformação interna do exercício da palavra chegando ao despertar da retórica na nova civilidade, no qual são retomadas e desenvolvidas ao menos duas formas: a argumentativa e a informativa. A argumentação adquire grande importância na organização de debates que se caracterizam pela mistura de cerimônia e conversação, que seguem um rígido protocolo. Contudo, segundo Betron (2006, p. 178) esse ideal se concretizou “sob o duplo efeito da progressão das normas sociais que enquadram a violência e da criminalização bem-sucedida da violência civil [...] essa ruptura talvez não se tenha dado em profundidade”. A um menor relaxamento das leis, tem-se o risco de retornar a um estágio anterior. Ainda assim, o processo de pacificação dos costumes serve de referência sobre como a violência pode recuar, principalmente a partir de um novo uso da palavra. Neste sentido, a ideia defendida pelo autor é de que a civilidade e a polidez são “a matriz do processo de objetivação que é essencial ao recuo da violência”. Estes estudos adquirem relevância não somente para uma melhor compreensão dos processos históricos que desencadearam a busca pela democracia e do papel significativo que a palavra tem nas relações sociais, como também para a análise sobre como se articulam estas relações nas sociedades contemporâneas.

 

Observações:

: Democracia. Palavra. Civilidade.

 

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