Síntese crítica - Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro

GARPAR, Madu. Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
Mestranda Karla Adriana Nascimento Cunico[1]


           Na introdução Gaspar faz um panorama sobre a área de atuação da arqueologia. Ao afirmar que “a arqueologia é a ciência que estuda as culturas a partir do seu aspecto material, construindo suas interpretações através da análise dos artefatos, seus arranjos espaciais e sua implantação na paisagem” (p. 07).
Em linhas gerais, Gaspar (p. 08) as possibilidades do campo de estudo da arqueologia diz que “o investimento maior dos pesquisadores brasileiros tem sido no estudo de culturas pré-históricas”. E quando se refere à ocupação do território brasileiro situa “a referência cronológica para o início da ocupação do território brasileiro seja de 12 mil anos”.
A pesquisadora também afirma que os estudos da arqueologia nacional “tem se dedicado também ao estudo sistemático da ocupação da costa por pescadores e coletores que se instalaram na faixa litorânea por volta de 6.500 anos AP[2]” (p. 08).
O principal objeto do livro são os Sambaquis. Quanto ao nome dado a este tipo de sítio, a autora diz que “Sambaqui é uma palavra de etimologia Tupi, língua falada pelos horticultores e ceramistas que ocupavam parte significativa da costa brasileira quando os europeus iniciaram a colonização. Tamba significa conchas e kiamontoado, que são as características mais marcantes desse tipo de sítio” (p. 09) e ao explicar as características físicas dos Sambaquis afirma que

são caracterizados basicamente por serem uma elevação de forma arredondada que, em algumas regiões do Brasil, chega a ter mais de 30m de altura. São construídos basicamente com restos faunísticos como conchas, ossos de peixe e mamíferos. Ocorrem também frutos e sementes, sendo que determinadas áreas dos sítios foram espaços dedicados ao ritual funerário e lá forma sepultados homens, mulheres e crianças de diferentes idades. Contam igualmente com inúmeros artefatos de pedra e osso, marcas de estacas e manchas de fogueiras, que compõem uma intricada estratigrafia. (p. 09)

O Sambaqui ainda “é considerado o resultado de ordenado trabalho social que tinha por objetivo, entre outras coisas, construir um imponente marco paisagístico” (p. 10).

Breve história das pesquisas em Sambaqui

As pesquisas arqueológicas sobre os Sambaquis pautaram-se segundo Gaspar em três vertentes conhecidas como “naturalista”, “artificialista” e “mista”. Para a autora a vertente “naturalista”, “considerava que os sambaquis eram resultados do recuo do mar e da ação do vento exercida sobre as conchas lançadas à praia” (p. 12). A vertente dos “artificialistas” “sustentavam que eram resultado da ação humana e propunham diversas explicações sobre o acúmulo de restos faunísticos” (p. 12). Com o avançar das pesquisas, os indícios de ação humana nos sambaquis se tornaram cada vez mais evidentes, nisso surgir a corrente “mista”, onde “percebe os sambaquis como uma combinação de elementos naturais e humanos” (p. 13).
A autora sinaliza que a evolução das pesquisas arqueológicas sobre Sambaquis iniciaram na década de 1950

as pesquisas de arqueologia consideradas modernas [...] a intelectualidade brasileira dá início a um intenso movimento visando proteger os sambaquis, que desde o século XVI vinham sendo destruídos sistematicamente, já que as conchas eram utilizadas para a fabricação de cal. (p. 17/18)

Dando prosseguimento nos aspectos históricos das pesquisas arqueológicas sobre esse tipo de sítio, afirma que na metade da década de 90 enfim

a arqueologia brasileira começou a abandonar o excessivo empirismo que sempre a caracterizou, voltando-se para a resolução de determinadas questões. Temas como domesticação de vegetais, sedentarismo, identidade social, territorialidade e organização social passaram a compor o cenário científico. (p. 26)

Os estudos demarcam que a vertente “mista”, é bem aceita no campo científico, compreende que “após o abandono do sítio pelo grupo que o construiu, o local tenha passado por inúmeros processos naturais e culturais que determinaram sua feição atual” (p. 28).
Com o passar do tempo esses sítios, já sem seus construtores, foram reutilizados para os mais variados fins

horticultores faziam ali suas roças, aproveitando a concentração de matéria orgânica; os colonizadores portugueses erigiam algumas de suas igrejas e de seus faróis sobre tais locais, pontos estratégicos para o domínio da paisagem natural e social. Com o desenvolvimento econômico do país, os sambaquis foram intensamente minerados para o fabrico de cal e pavimentação de estradas, dando lugar às cidades litorâneas (p. 28/29).

A ocupação do litoral brasileiro

Gaspar afirma sua posição em consonância aos “pesquisadores que estudam a evolução do litoral brasileiro informam que por volta de 7 mil anos AP o mar estava recuado e que esse ambiente, hoje coberto pelas águas, pode ter sido o local de moradia dos primeiros sambaquieiros” (p. 32). Existem três hipóteses sobre o processo de colonização do nosso litoral:
ü  Os mais antigos sítios conhecidos foram construídos por uma população que já tinha o hábito de explorar ambientes costeiros
ü  Essa população veio de um ambiente semelhante ao encontrado na costa do Brasil
ü  Desenvolveu o seu modo de vida no litoral há muito tempo

O Sambaqui é um espaço peculiar onde encontra-se vestígios de três importantes aspectos da vida em uma sociedade: local de habitação; sepultamento dos mortos e restos alimentares. Gaspar (p. 34) salienta que

muita coisa já foi dita sobre esse espaço construído: que o cheiro de ostra e de marisco em decomposição era insuportável; que os mosquitos infernizavam a vida das pessoas; e que o acúmulo de matéria orgânica criaria condições favoráveis para a proliferação de doenças. Segundo essa ótica, os sambaquieiros teriam criado um lugar desagradável.


Este é um ponto crucial na discussão que envolve o uso efetivo do sambaqui por parte da sociedade que o criou, como os habitantes conseguiam viver em um espaço que continha restos de alimentos e vestígios funerários?  Gaspar nos alerta que a “percepção é formada culturalmente e, portanto, é relativa; o cheiro de frutos do mar poderia não ser desagradável para quem vivia da pesca” (p. 34).
A autora afirma que como não existem herdeiros culturais dos sambaquieiros, esse grupo “só ganha consistência a partir do contraste com outros conjuntos de vestígios que lhe são contemporâneos” (p. 35).  

Essa reflexão parte do princípio de que o espaço é um aspecto estruturador da vida em sociedade, de que existe uma estreita relação entre o que uma coisa é e o lugar no qual está situada. O lugar é, em si mesmo, parte do ser do objeto. Essa premissa é particularmente reveladora no caso do sambaqui, locus de ritual funerário, o que fornece a este mesmo espaço uma dimensão sagrada (p. 36).

Quanto aos estudos dedicados a relação espaço-temporal dos sambaquis, Gaspar afirma que “é certo que por volta de 6.500 anos AP os sambaquieiros já estavam ocupando o litoral do Paraná e dali teriam partido seguindo dois eixos: um em direção ao norte e outro, ao sul do país” (p. 39).
            Gaspar enfatiza que os sambaquieiros não viveram em completo isolamento de outros grupos pré-coloniais, para ela, “população, língua e cultura não se sobrepõem exatamente como gostariam os pesquisadores. A cultura deve ser pensada como entidade dinâmica e sempre em mudança” (p 41).

Tipo de ocupação: nômades ou sedentários?

Neste tópico, Gaspar alerta aos leitores sobre as condições ambientais dos espaços que abrigavam os sambaquis, tais condições foram interpretadas por análise in loco, visto que nos sambaquis não são encontrados vestígios que remetam ao ambiente encontrado pelos construtores dos mesmos. A autora afirma que eles “estabeleciam seus assentamentos em locais estratégicos onde pudessem obter alimentos todos os dias e durante o ano inteiro” (p. 42). Os sítios eram construídos em locais estratégicos, sendo “áreas de interseção ambiental. Próximos de enseada, canal, rio, laguna, manguezal e floresta, dos sambaquis era possível alcançar rapidamente os diferentes ambientes” (p. 42). Neste sentido afirma-se que os sambaquieiros eram uma população sedentária e permaneciam por um longo tempo naquelas construções.



Tempo de ocupação dos sambaquis

Durante os anos de 1994-95, Gaspar analisou a datação de 147 sítios, com esse trabalho concluiu que os sítios foram ocupados por um longo período, sendo que “a grande maioria funcionou por mais de cem anos, ininterruptamente. Alguns estiveram ativos durante mais de mil anos, período surpreendente e inesperado para o que se considerava um bando de coletores nômades” (p. 45).

Tecnologia, arte e domínio do mar

Com os indícios de ocupação de ilhas e restos faunísticos de alto mar, entende-se que “os sambaquieiros certamente dispunham de algum tipo de embarcação para garantir as rotineiras idas e vindas entre os diferentes pontos do continente e ilhas” (p. 48).
A análise dos artefatos encontrados nos sambaquis, evidencia que aquele povo tinha uma tecnologia avançada para caça, pesca, fabricação de adornos, utensílios de cozinha, trabalho com madeira, além de que “a destreza em lidar com as pedras está manifesta tanto nos pingentes como nas esculturas” (p. 51). Tais pedras eram lascadas e polidas, em locais conhecidos como oficinas de polimento, que 

são diques de diabásio ou basalto que apresentam conjuntos de marcas correspondentes à preparação do lado, da face e do gume da lâmina. Geralmente estão próximos da água, elemento que, junto com a areia, agilizava a obtenção do polimento desejado. (p. 52)

Nos sambaquis além de ainda são encontradas esculturas de pedra e também de osso “conhecidas como zoólitos (zoo=animal, lito=pedra); são objetos que impressionam pela beleza e pelo equilíbrio de formas” (p. 52).

Sambaquis próximos, moradores vizinhos

            Ao analisar artefatos de vários sítios, a autora percebeu certa familiaridade no modo de produção e no formato final de tais artefatos, com isso “evidenciou uma cultua material produzida por pessoas que circulavam entre os sítios e que viajavam pelo litoral de uma maneira capaz de disseminar e manter o modo de resolver os seus problemas e fazer suas coisas” (p. 56). Entende-se que a ocupação simultânea de sítios próximos possibilitou a convivência entre seus habitantes, ressalta-se que a mesma foi pacífica, visto que “não há nos ossos humanos indícios de disputas sistemáticas nem arsenal tecnológico voltado para a guerra” (p. 57).

Atividades nos sambaquis e indícios de mudança social

Os sambaquis, independentemente de suas dimensões, tinham a mesma função de servir seus ocupantes, eram

o espaço das atividades rotineiras de um grupo pescador e o local de sepultamento dos membros da população [...] sua dimensão relacionava-se com a maior intensidade de atividades rotineiras decorrente do maior número de pessoas envolvidas ou maior tempo de duração (p. 61)


            Quanto a densidade demográfica, estima-se que cada “comunidade sambaquieira contaria com pelo menos três sítios ativos, além de reunir um número maior de sítios de pequeno porte [...] é possível ter como parâmetro 180 pessoas para os grupamentos menos densos” (p. 62).
            A autora observou que os sambaquis da região de Laguna/SC apresentavam uma característica singular quanto ao uso de seus espaços, naquela região “os grandes sítios, a produção de esculturas e a criação de locais específicos para os mortos delineiam o desenvolvimento de características regionais” (p. 65).
            Com o desenrolar do tempo, os sambaquieiros começaram a participar de interações culturais cada vez mais intensas, Gaspar afirma que “é o contato com outras culturas que explica também a desestruturação da sociedade sambaquieira” (p. 67). Em um primeiro momento esse contato foi com os ceramistas do interior e é esse fato

que explica a presença de cacos de cerâmica nos últimos níveis  de ocupação de muitos sítios sem que tenha havido mudanças significativas em outros aspectos da vida social [...] considerando as características dos grupos que estavam na costa brasileira quando os europeus chegaram, os sambaquieiros devem ter sido incorporados ou eliminados (p. 67/68).

A autora lembra que os assuntos relacionados ao desaparecimento da sociedade que construiu os sambaquis não foram devidamente aprofundados por pesquisas científicas, logo, só podem ser tratados de maneira superficial.

Ritual funerário

            O tratamento dado aos mortos pelos sambaquieiros é um capítulo repleto de detalhes, que permite aos arqueólogos a dedução de vários aspectos daquela sociedade, nos sambaquis é possível encontrar resquícios de ossadas humanas, mas

os sepultamentos, embora sigam um determinado padrão, não são idênticos nem mesmo em único sítio. É difícil estabelecer se o programa mortuário sofreu mudanças através do tempo, mas é certo que houve tratamento especial para certos indivíduos e que estas especificidades não se restringiam às diferenças de idade e de sexo (p. 70).


Durante as pesquisas arqueológicas, foram encontrados rituais funerários diversos, eles incluíam adornos, enfeites, ferramentas e equipamento de pesca e caça – que os pesquisadores indicam ser do falecido. Gaspar diz que “é possível considerar que o programa mortuário remete à organização social dos sambaquieiros e que a presença de sepultamentos elaborados se refere à existência de desigualdade social” (p. 70). Os artefatos encontrados junto aos sepultamentos, indicam o grupo a que pertencia a pessoa que foi enterrada ali, provavelmente um bom caçador era enterrado com seus materiais de caça, por exemplo.

Organização social: bando, tribo ou chefia?
           
Neste tópico Gaspar busca tratar das diferenças entre “bando”, “tribo” e “chefia”, traz a luz a cada conceito para explicar como ela enquadrou os sambaquieiros, para ela as evidencias tratadas no livro -  localização dos sítios, rituais funerários diferenciados – indicam que eles tinham “uma sociedade com incipiente hierarquia social” (p. 76).
Para os pesquisadores os povos dos sambaquis não se enquadram nos conceitos “bando”, “tribo” ou “chefia”, provavelmente havia alguém que ocupasse a posição central da sociedade em questão, mas dificilmente institucionalizado, inclusive na questão da organização do trabalho, não foram encontrados indícios de que houvesse um controle por parte de um grupo dominante.


SÍNTESE CRÍTICA

O tema está longe de ser concluído, mas Gaspar deixa claro sua posição no que se refere ao conceito recorrente da comunidade acadêmica que tem “a imagem dos sambaquieiros como um pequeno bando de coletores de moluscos”, para a autora essa categorização simplista não condiz com a verdade, a sociedade sambaquieira representa “uma realidade muito mais complexa, capaz de executar grandes obras – como a construção dos próprios sítios –, que contava com artesãos que se aprimoraram na arte lítica e cuja trama social incluía número significativo de pessoas (p. 78).




[1] Mestranda em Patrimônio Cultural e Sociedade - Universidade da  Região de Joinville - UNIVILLE
[2] Para Gaspar, “AP significa ‘antes do presente’, que, por convenção, é 1950. Trata-se de uma menção à descoberta da técnica de datação através do Carbono 14, que se deu em 1952. Assim, o evento mencionado ocorreu 6.500 anos antes de 1950” (p. 08).

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