Resenha crítica de "A poética do espaço", de Gaston Bachelard

Resenha crítica de A POÉTICA DO ESPAÇO, de GASTON BACHELARD

Autores da Resenha:

José Isaías Venera

Referência do texto:

BACHELARD, Gaston. Os pensadores. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

Palavras-chave:

 

DESENVOLVIMENTO DO TEXTO

Parte I

O filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962) abre sua obra,  A poética do espaço, anunciando uma fissura com a filosofia das ciências: “Um filósofo que formou todo o seu pensamento ligando-se aos temas fundamentais da filosofia das ciências, que seguiu, o mais precisamente possível, a linha do racionalismo ativo, a linha do racionalismo crescente da ciência contemporânea, deve esquecer seu saber, romper com todos os hábitos de pesquisa» filosóficas, se quiser estudar os problemas colocados pela imaginação poética.” (1978, p. 193).

Esse rompimento com a filosofia das ciências decorre da tese que defende, de investigar o fenômeno que antecede à linguagem, na qual denomina como “imagem poética”. “É preciso estar presente, presente à imagem no minuto da imagem: se houver uma filosofia da poesia, essa filosofia deve nascer e renascer no momento em que surgir um verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, no êxtase da novidade da imagem, A imagem poética é um súbito relevo do psiquismo, relevo mal estudado nas causalidades psicológicas secundárias” (1978, p. 193). A imagem poética enquanto súbito relevo do psiquismo antecede o pensamento, ou seja, anteceder a linguagem presa a um sistema de interpretação.

Na imagem poética não há, como na filosofia cientifica, um corpo de ideias que regule seu pensar. Poderíamos talvez entender que o ato poético advém deste relevo psíquico ao qual o autor fala, ou a imagem antecedendo causando o psiquismo: “[...] filosofia da poesia deve reconhecer que o ato poético não tem passado — pelo menos não um passado no decorrer do qual pudéssemos seguir a sua preparação e o seu advento” (1978, p. 193).

Para dar conta desta tese, Bachelard recorre a noção de arquétipo como expressão do inconsciente coletivo, numa referência à psicologia analítica de Jung,  mas em um percurso inverso do que se poderia facilmente deduzir, de que os arquétipos que causam as imagens, ao contrário, são as imagens que fazem ressoar ecos do passado longínquo

“Quando, no decorrer das nossas observações, tivermos que mencionar a relação de uma imagem poética nova com um arquétipo adormecido no inconsciente, será necessário compreendermos que essa relação não é propriamente causal. A imagem poética não está submetida a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Ela advém de uma ontologia direta. É com essa ontologia que desejamos trabalhar” (1978, p. 193). 

Bachelard se aproxima de Jung e passa a tecer críticas à psicanálise, campo pelo qual as imagens expressariam algo fora delas, da ordem do inconsciente e indicam processos de recalcamento. Nesse sentido, na psicanálise, a imagem seria produzida por uma demanda do inconsciente, ou seja, teria uma causalidade. A imagem que lhe interessa é a criadora, que não se reduz a uma análise causal submetida a um conjunto de regras. “Dizer que a imagem poética escapa à causalidade é, sem dúvida, uma declaração que tem gravidade. Mas as causas alegadas pelo psicólogo e pelo psicanalista não podem jamais explicar bem o caráter realmente inesperado da imagem nova, como também não explicam a adesão que ela suscita numa alma estranha ao processo de sua criação. O poeta não me confia o passado de sua imagem e no entanto sua imagem se enraíza, de imediato, em mim. A comunicabilidade de uma imagem singular é um fato de grande significação ontológica” (1978, p. 184).

 

Parte II

Nessa segunda parte, Bachelard justifica a mudança em relação aos seus trabalhos anteriores inscritos numa filosofia das ciências, sendo esse trabalho atual demarcado como uma fenomenologia da imaginação, ou fenomenologia da imagem. Nessa parte, ele especifica o que podemos entender como método para uma fenologia da imagem: “[...] pede-se ao leitor de poemas para não tomar uma imagem como objeto, menos ainda como substituto do objeto, mas perceber-lhe a realidade específica. É preciso para isso associar sistematicamente o ato da consciência criadora ao produto mais fugaz da consciência: a imagem poética. Ao nível da imagem poética, a dualidade do sujeito e do objeto é matizada, iluminada, incessantemente ativa em suas inversões. No domínio da criação da imagem poética pelo poeta, a fenomenologia é, se assim podemos dizer, uma fenomenologia microscópica. Daí essa fenomenologia ter probabilidade de ser estritamente elementar. Nessa união, pela imagem, de uma subjetividade pura, mas efêmera, com uma realidade que não chega necessariamente à sua completa constituição, o fenomenólogo encontra um campo para inúmeras experiências; aproveita observações que podem ser precisas porque são simples, porque "não levam a consequências", como é o caso dos pensamentos científicos que estão sempre ligados. A imagem, em sua simplicidade, não precisa de um saber. Ela é a dádiva de uma consciência ingênua. Em sua expressão, é uma linguagem jovem. O poeta, na novidade de suas imagens, é sempre origem de linguagem. Para especificarmos bem o que possa ser uma fenomenologia da imagem, para frisarmos que a imagem existe antes do pensamento, seria necessário dizer que a poesia é antes de ser uma fenomenologia do espírito, uma fenomenologia da alma. Deveríamos então acumular documentos sobre a consciência sonhadora” (1978, p. 185, grifo meu).

Quando Bachelard diz que é preciso “associar sistematicamente o ato da consciência criadora ao produto mais fugaz da consciência: a imagem poética”, acaba por centralizar a discussão à noção de criação. Talvez por isso, refere-se seguidamente a imagem nova, nova no sentido de criação, de acontecimento e que será fugaz na consciência porque não se reduz ou se prende ao pensamento sistêmico. 

Na sequência, o autor mostra que na filosofia alemã, diferente da francesa, faz uma distinção entre alma e espírito. Para desenvolver a noção de alma, recorre à leitura de historiador da arte, René Huygle, sobre a pintura de George Rouault: “E a alma — prova-o a pintura de Rouault — possui uma luz interior, aquela luz que uma ‘visão interior’ conhece e traduz no mundo das cores deslumbrantes, no mundo da luz do Sol” (1978, p.  186). A pintura que expressa essa luz interior, confirma “que há um sentido em se falar de uma fenomenologia da alma” (1978, p.  186).

Quanto à poesia, desenvolve no mesmo sentido, enquanto expressão da alma. “A consciência associada à alma está mais fundada, menos intencionalizada do que a consciência associada aos fenômenos do espírito. Nos poemas se manifestam forças que não passam pelos circuitos de um saber. As dialéticas da inspiração e do talento tornam-se claras se considerarmos os seus dois polos: a alma e o espírito” (1978, p. 186). Como se pode observar, o espírito é lapidado pela razão, seque princípios já formatados, enquanto a alma ainda não estaria capturada por essas amarras. 

“As dialéticas da inspiração e do talento tornam-se claras se considerarmos os seus dois polos: a alma e o espírito. Em nossa opinião, alma e espírito são indispensáveis para estudar os fenômenos da imagem poética, em seus diversos matizes, a fim de que se possa seguir sobretudo a evolução das imagens poéticas desde o devaneio até a sua execução. Particularmente, será como fenomenologia da alma que estudaremos, numa outra obra, o devaneio poético” (1978, p. 186). Para deixar mais clara seu entendimento, recorre a Pierre-Jean Jouve: "A poesia é uma alma inaugurando uma forma" (1978, p.  186). E aí temos talvez a noção de criação apresentadas, este novo que se apresenta sem se subordinar a uma modelo, a uma forma existente, para, a partir dele, inaugurar uma forma.

 

Parte III

Na terceira parte, Bachelard desenvolve a fenomenologia da alma sobre a poesia, na qual ela (a fenomenologia) que “pretende ir tão longe, descer tão profundamente, deve ultrapassar, por razões de método, as ressonâncias sentimentais com que, mais ou menos ricamente — quer essa riqueza esteja em nós, quer no poema —, admitimos a obra de arte”( 1978, p. 187).  A distinção que o autor fez entre alma e espírito nos serve de baliza para o estudo da fenomenologia. Nesta parte, observa os fenômenos da ressonância e da repercussão. Na distinção, a ressonância refere-se aos diferentes planos da nossa vida ressoam o mundo, enquanto a repercussão evoca nossa própria existência. 

“Na ressonância, ouvimos o poema, na repercussão nós o falamos, pois é nosso. A repercussão opera uma revirada do ser. Parece que o ser do poeta é nosso ser. A multiplicidade das ressonâncias sai então da unidade do ser da repercussão. Dito de maneira mais simples, trata-se de uma impressão bem conhecida por todo leitor apaixonado por poemas: o poema nos prende por completo. Essa tomada do ser pela poesia tem uma marca fenomenológica que não engana” (1978, p. 187). Poderíamos dizer que quanto um poema nos prende, é nosso ser que é convocado a expressar, a ressoar.

A imaginação poética está relacionada com o que Bachelard chama de repercussão. “Trata-se, com efeito, de determinar, pela repercussão de uma só imagem poética, um verdadeiro despertar da criação poética na alma do leitor. Por sua novidade, uma imagem poética abala toda a atividade linguística. A imagem poética nos coloca diante da origem do ser falante” (1978, p. 187).

O modo com o filósofo desenvolveu a repercussão no ser, seque os princípios da parte II em relação à alma. A criação como expressão da alma, produzindo um acontecimento em relação ao espírito, este segundo que por sua vez diz respeito aos territórios já demarcados pela ciência. 

Esse movimento de criação não diz respeito somente ao poema enquanto expressão do ser do poeta, mas também do leitor: “a imagem que a leitura do poema nos oferece faz-se verdadeiramente nossa. Enraíza-se em nós mesmos. Recebemo-la, mas nascemos para a impressão de que poderíamos criá-la, de que deveríamos criá-la. A imagem se transforma num ser novo de nossa linguagem, exprime-nos fazendo-nos o que ela exprime, ou seja, ela é ao mesmo tempo um devir de expressão e um devir de nosso ser. No caso, ela é a expressão criada do ser” (1978, p. 188).

Assim, o sentido, ou a imagem, que o leitor constrói a partir de um poema articula a ressonância à repercussão. Podemos então dizer que um poema ressoa no leitor, mas o sentido, ou a imagem que ele construirá será a partir da leitura como repercussão de seu ser. 

Com esse desenvolvimento, Bachelard forma sua tese geral, que é investigar o ser, mas não a partir do logos, como a filosofia tem feito sobretudo desde Aristóteles, mas de “meditar sobre uma região que estaria antes da linguagem” (1978, p. 188), ao qual chama de imagem poética.  

Essa leitura segue a crítica principalmente à psicanálise, que mesmo negando o logos, faz isso com excesso de interpretação ao ponto de, ao tentar traduzir a fala do sujeito acaba por traí-lo. “Para o psicanalista, a imagem poética tem sempre um contexto. Interpretando a imagem, ele a traduz em outra linguagem que não o logos poético. Nunca se poderia dizer com mais justiça, então: traduttore, traditore” (1978, p. 188).

 

Parte IV

Bachelard apresenta a imagem poética como imaginação pura. Para um fenomenólogo da imagem poética, é preciso ser sistematicamente modesto, de ter consciência de que não é possível chegar à potência da criação organizada e completa de um poema. Nesse sentido, um fenomenologista não tem mais nada em comum com um crítico literários que se movimenta a partir do espírito, do logos, de uma sistematização do objeto analisado. “O fenomenólogo nada tem em comum com o crítico literário que, como observamos frequentemente julga uma obra que não poderia fazer, e mesmo, no testemunho de fáceis condenações, uma obra que ele não desejaria fazer” (1978, p. 189).

Um ponto importante desta parte da introdução é de evidenciar que “todo leitor que relê uma obra que ama sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito” (1978, p. 189). Podemos dizer que a obra ressoa em seu ser, cujas imagens que formam é uma repercussão de seu ser.

Interessante observar esse duplo movimento de Bachelard, de um lado a criação da alma e de outro o espírito que reprime a imaginação: “A menor reflexão crítica estanca esse impulso quando coloca o espírito em posição secundária, o que destrói a primitividade da imaginação” (1978, p. 190).

Entre os autores que coabitam a leitura de Bachelard, está Henri Bergson: “Nessa admiração que ultrapassa a passividade das atitudes contemplativas, parece que a alegria de ler é o reflexo da alegria de escrever, como se o leitor fosse o fantasma do escritor. Ao menos, o leitor participa dessa alegria da criação que Bergson considera como o signo da criação. Aqui, a criação se produz na linha sutil da frase, na vida efêmera de uma expressão” (1978, p. 190). Poderíamos também entender que o leitor constrói a sua imagem a partir da obra, estendendo o plano de expressão, ou seja, insere-se em um devir criativo.

 

Parte V

Nessa subdivisão da introdução, Bachelard sinaliza o devir da expressão de um verso como um “fenômeno da consciência iluminada” (1978, p. 190). A imagem poética é tomada como um acontecimento psíquico que produz uma realidade sensível, neste caso uma obra, como um verso. 

“Mas o verso tem sempre um movimento, a imagem se escoa na linha do verso, levando a imaginação, como se a imaginação criasse uma fibra nervosa” (1978, p. 191). Essa fibra nervosa é o próprio sujeito que se cria no verso. Por isso, Bachelard recorrer às palavras do psicanalista Jean-Bertrand Pontalis: “O sujeito falante é todo o sujeito" (1978, p. 191). 

 

Parte VI

Nesta parte final da introdução, antes de apresentar os capítulos, Bachelard faz uma aproximação da imagem poéticas com um conceito da psicanálise, o de sublimação: “Talvez a situação fenomenológica venha a ser precisada, no que se refere às indagações psicanalíticas, se pudermos isolar, a propósito das imagens poéticas, uma esfera de sublimação pura, de uma sublimação que não sublima nada, que é desprovida da carga das paixões, liberada do ímpeto dos desejos” (1978, p. 191). No decorrer do texto, o filósofo faz várias críticas à psicanálise, talvez por isso e tenha dito “se pudermos isolar”, ou seja, aproveitar de um conceito da psicanálise para associar com as imagens poéticas. Mas ele faz um acréscimo, sublimação pura. A sublimação em Sigmund Freud refere-se à transformação da pulsão em algo socialmente aceito, isto quer dizer, transformação da energia psíquica em uma produção como fazem os poetas e os artistas plásticos. 

A consciência poética, que se forma da imagem poética, aponta para o novo, por isso é “uma linguagem tão nova que já não se podem considerar utilmente correlações entre o passado e o presente” (1978, p. 192). É nessa ruptura com o espírito que se expressa na racionalidade simbólica do mundo, que a imagem poética se expressa e por meio do qual Bachelard dará “no decorrer de nossa obra, exemplos de tais rupturas de significação, de sensação, de sentimentalidade, que será preciso convenhamos que a imagem poética existe sob o signo de um ser novo” (1978, p. 192).

Se o filósofo aproxima a expressão poética da sublimação, também não poupará críticas à interpretação da psicanálise a esse processo: “E logo o psicanalista deixa o estudo ontológico da imagem; ele aprofunda a história de um homem; vê, mostra os sofrimentos secretos do poeta. Explica a flor pelo estrume” (1978, p. 192).  Em síntese, para a psicanálise seria precisar interpretar o poema pelo sofrimento do poeta, ao passo que para o fenomenólogo “a poesia tem uma felicidade que lhe é própria, qualquer que seja o drama que ela seja levada a ilustrar” (1978, p. 192). 

Evidentemente, não se trata de negar a realidade psíquica de um poeta, mas “de viver o invivido e de abrir-se a uma abertura da linguagem” (1978, p. 192). Como podemos ver, o ponto central que Bachelard parece perseguir é o da criação, do acontecimento na linguagem como esse novo que se abre e reluz o ser.  

Bachelard apresenta como uma questão de método separar a sublimação que vem da psicanálise com o que ele chama de sublimação pura. A crítica à psicanálise seque o passe de Jung, para quem considera que os psicanalistas transformam a análise da arte em casos clíticos. A sublimação pura aponta para a compreensão da imaginação nos espaços vividos, que fogem da positivação, ou seja, que escapam da racionalidade que subordina a realidade. “O espaço compreendido pela imaginação não pode ficar sendo o espaço indiferente abandonado à medida e reflexão do geômetra. É vivido. E é vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação.” (1978, p. 196). O primeiro capítulo do livro nos dará conta desses espaços vividos ao qual chama de a poética do espaço.

Observações:

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