Resenha crítica de "A poética do espaço", de Gaston Bachelard

Resenha crítica de A POÉTICA DO ESPAÇO, de GASTON BACHELARD

Autores da Resenha:

José Isaías Venera

Referência do texto:

BACHELARD, Gaston. Os pensadores. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

Palavras-chave:

 

DESENVOLVIMENTO DO TEXTO

Parte I

O filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962) abre sua obra,  A poética do espaço, anunciando uma fissura com a filosofia das ciências: “Um filósofo que formou todo o seu pensamento ligando-se aos temas fundamentais da filosofia das ciências, que seguiu, o mais precisamente possível, a linha do racionalismo ativo, a linha do racionalismo crescente da ciência contemporânea, deve esquecer seu saber, romper com todos os hábitos de pesquisa» filosóficas, se quiser estudar os problemas colocados pela imaginação poética.” (1978, p. 193).

Esse rompimento com a filosofia das ciências decorre da tese que defende, de investigar o fenômeno que antecede à linguagem, na qual denomina como “imagem poética”. “É preciso estar presente, presente à imagem no minuto da imagem: se houver uma filosofia da poesia, essa filosofia deve nascer e renascer no momento em que surgir um verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, no êxtase da novidade da imagem, A imagem poética é um súbito relevo do psiquismo, relevo mal estudado nas causalidades psicológicas secundárias” (1978, p. 193). A imagem poética enquanto súbito relevo do psiquismo antecede o pensamento, ou seja, anteceder a linguagem presa a um sistema de interpretação.

Na imagem poética não há, como na filosofia cientifica, um corpo de ideias que regule seu pensar. Poderíamos talvez entender que o ato poético advém deste relevo psíquico ao qual o autor fala, ou a imagem antecedendo causando o psiquismo: “[...] filosofia da poesia deve reconhecer que o ato poético não tem passado — pelo menos não um passado no decorrer do qual pudéssemos seguir a sua preparação e o seu advento” (1978, p. 193).

Para dar conta desta tese, Bachelard recorre a noção de arquétipo como expressão do inconsciente coletivo, numa referência à psicologia analítica de Jung,  mas em um percurso inverso do que se poderia facilmente deduzir, de que os arquétipos que causam as imagens, ao contrário, são as imagens que fazem ressoar ecos do passado longínquo

“Quando, no decorrer das nossas observações, tivermos que mencionar a relação de uma imagem poética nova com um arquétipo adormecido no inconsciente, será necessário compreendermos que essa relação não é propriamente causal. A imagem poética não está submetida a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Ela advém de uma ontologia direta. É com essa ontologia que desejamos trabalhar” (1978, p. 193). 

Bachelard se aproxima de Jung e passa a tecer críticas à psicanálise, campo pelo qual as imagens expressariam algo fora delas, da ordem do inconsciente e indicam processos de recalcamento. Nesse sentido, na psicanálise, a imagem seria produzida por uma demanda do inconsciente, ou seja, teria uma causalidade. A imagem que lhe interessa é a criadora, que não se reduz a uma análise causal submetida a um conjunto de regras. “Dizer que a imagem poética escapa à causalidade é, sem dúvida, uma declaração que tem gravidade. Mas as causas alegadas pelo psicólogo e pelo psicanalista não podem jamais explicar bem o caráter realmente inesperado da imagem nova, como também não explicam a adesão que ela suscita numa alma estranha ao processo de sua criação. O poeta não me confia o passado de sua imagem e no entanto sua imagem se enraíza, de imediato, em mim. A comunicabilidade de uma imagem singular é um fato de grande significação ontológica” (1978, p. 184).

 

Parte II

Nessa segunda parte, Bachelard justifica a mudança em relação aos seus trabalhos anteriores inscritos numa filosofia das ciências, sendo esse trabalho atual demarcado como uma fenomenologia da imaginação, ou fenomenologia da imagem. Nessa parte, ele especifica o que podemos entender como método para uma fenologia da imagem: “[...] pede-se ao leitor de poemas para não tomar uma imagem como objeto, menos ainda como substituto do objeto, mas perceber-lhe a realidade específica. É preciso para isso associar sistematicamente o ato da consciência criadora ao produto mais fugaz da consciência: a imagem poética. Ao nível da imagem poética, a dualidade do sujeito e do objeto é matizada, iluminada, incessantemente ativa em suas inversões. No domínio da criação da imagem poética pelo poeta, a fenomenologia é, se assim podemos dizer, uma fenomenologia microscópica. Daí essa fenomenologia ter probabilidade de ser estritamente elementar. Nessa união, pela imagem, de uma subjetividade pura, mas efêmera, com uma realidade que não chega necessariamente à sua completa constituição, o fenomenólogo encontra um campo para inúmeras experiências; aproveita observações que podem ser precisas porque são simples, porque "não levam a consequências", como é o caso dos pensamentos científicos que estão sempre ligados. A imagem, em sua simplicidade, não precisa de um saber. Ela é a dádiva de uma consciência ingênua. Em sua expressão, é uma linguagem jovem. O poeta, na novidade de suas imagens, é sempre origem de linguagem. Para especificarmos bem o que possa ser uma fenomenologia da imagem, para frisarmos que a imagem existe antes do pensamento, seria necessário dizer que a poesia é antes de ser uma fenomenologia do espírito, uma fenomenologia da alma. Deveríamos então acumular documentos sobre a consciência sonhadora” (1978, p. 185, grifo meu).

Quando Bachelard diz que é preciso “associar sistematicamente o ato da consciência criadora ao produto mais fugaz da consciência: a imagem poética”, acaba por centralizar a discussão à noção de criação. Talvez por isso, refere-se seguidamente a imagem nova, nova no sentido de criação, de acontecimento e que será fugaz na consciência porque não se reduz ou se prende ao pensamento sistêmico. 

Na sequência, o autor mostra que na filosofia alemã, diferente da francesa, faz uma distinção entre alma e espírito. Para desenvolver a noção de alma, recorre à leitura de historiador da arte, René Huygle, sobre a pintura de George Rouault: “E a alma — prova-o a pintura de Rouault — possui uma luz interior, aquela luz que uma ‘visão interior’ conhece e traduz no mundo das cores deslumbrantes, no mundo da luz do Sol” (1978, p.  186). A pintura que expressa essa luz interior, confirma “que há um sentido em se falar de uma fenomenologia da alma” (1978, p.  186).

Quanto à poesia, desenvolve no mesmo sentido, enquanto expressão da alma. “A consciência associada à alma está mais fundada, menos intencionalizada do que a consciência associada aos fenômenos do espírito. Nos poemas se manifestam forças que não passam pelos circuitos de um saber. As dialéticas da inspiração e do talento tornam-se claras se considerarmos os seus dois polos: a alma e o espírito” (1978, p. 186). Como se pode observar, o espírito é lapidado pela razão, seque princípios já formatados, enquanto a alma ainda não estaria capturada por essas amarras. 

“As dialéticas da inspiração e do talento tornam-se claras se considerarmos os seus dois polos: a alma e o espírito. Em nossa opinião, alma e espírito são indispensáveis para estudar os fenômenos da imagem poética, em seus diversos matizes, a fim de que se possa seguir sobretudo a evolução das imagens poéticas desde o devaneio até a sua execução. Particularmente, será como fenomenologia da alma que estudaremos, numa outra obra, o devaneio poético” (1978, p. 186). Para deixar mais clara seu entendimento, recorre a Pierre-Jean Jouve: "A poesia é uma alma inaugurando uma forma" (1978, p.  186). E aí temos talvez a noção de criação apresentadas, este novo que se apresenta sem se subordinar a uma modelo, a uma forma existente, para, a partir dele, inaugurar uma forma.

 

Parte III

Na terceira parte, Bachelard desenvolve a fenomenologia da alma sobre a poesia, na qual ela (a fenomenologia) que “pretende ir tão longe, descer tão profundamente, deve ultrapassar, por razões de método, as ressonâncias sentimentais com que, mais ou menos ricamente — quer essa riqueza esteja em nós, quer no poema —, admitimos a obra de arte”( 1978, p. 187).  A distinção que o autor fez entre alma e espírito nos serve de baliza para o estudo da fenomenologia. Nesta parte, observa os fenômenos da ressonância e da repercussão. Na distinção, a ressonância refere-se aos diferentes planos da nossa vida ressoam o mundo, enquanto a repercussão evoca nossa própria existência. 

“Na ressonância, ouvimos o poema, na repercussão nós o falamos, pois é nosso. A repercussão opera uma revirada do ser. Parece que o ser do poeta é nosso ser. A multiplicidade das ressonâncias sai então da unidade do ser da repercussão. Dito de maneira mais simples, trata-se de uma impressão bem conhecida por todo leitor apaixonado por poemas: o poema nos prende por completo. Essa tomada do ser pela poesia tem uma marca fenomenológica que não engana” (1978, p. 187). Poderíamos dizer que quanto um poema nos prende, é nosso ser que é convocado a expressar, a ressoar.

A imaginação poética está relacionada com o que Bachelard chama de repercussão. “Trata-se, com efeito, de determinar, pela repercussão de uma só imagem poética, um verdadeiro despertar da criação poética na alma do leitor. Por sua novidade, uma imagem poética abala toda a atividade linguística. A imagem poética nos coloca diante da origem do ser falante” (1978, p. 187).

O modo com o filósofo desenvolveu a repercussão no ser, seque os princípios da parte II em relação à alma. A criação como expressão da alma, produzindo um acontecimento em relação ao espírito, este segundo que por sua vez diz respeito aos territórios já demarcados pela ciência. 

Esse movimento de criação não diz respeito somente ao poema enquanto expressão do ser do poeta, mas também do leitor: “a imagem que a leitura do poema nos oferece faz-se verdadeiramente nossa. Enraíza-se em nós mesmos. Recebemo-la, mas nascemos para a impressão de que poderíamos criá-la, de que deveríamos criá-la. A imagem se transforma num ser novo de nossa linguagem, exprime-nos fazendo-nos o que ela exprime, ou seja, ela é ao mesmo tempo um devir de expressão e um devir de nosso ser. No caso, ela é a expressão criada do ser” (1978, p. 188).

Assim, o sentido, ou a imagem, que o leitor constrói a partir de um poema articula a ressonância à repercussão. Podemos então dizer que um poema ressoa no leitor, mas o sentido, ou a imagem que ele construirá será a partir da leitura como repercussão de seu ser. 

Com esse desenvolvimento, Bachelard forma sua tese geral, que é investigar o ser, mas não a partir do logos, como a filosofia tem feito sobretudo desde Aristóteles, mas de “meditar sobre uma região que estaria antes da linguagem” (1978, p. 188), ao qual chama de imagem poética.  

Essa leitura segue a crítica principalmente à psicanálise, que mesmo negando o logos, faz isso com excesso de interpretação ao ponto de, ao tentar traduzir a fala do sujeito acaba por traí-lo. “Para o psicanalista, a imagem poética tem sempre um contexto. Interpretando a imagem, ele a traduz em outra linguagem que não o logos poético. Nunca se poderia dizer com mais justiça, então: traduttore, traditore” (1978, p. 188).

 

Parte IV

Bachelard apresenta a imagem poética como imaginação pura. Para um fenomenólogo da imagem poética, é preciso ser sistematicamente modesto, de ter consciência de que não é possível chegar à potência da criação organizada e completa de um poema. Nesse sentido, um fenomenologista não tem mais nada em comum com um crítico literários que se movimenta a partir do espírito, do logos, de uma sistematização do objeto analisado. “O fenomenólogo nada tem em comum com o crítico literário que, como observamos frequentemente julga uma obra que não poderia fazer, e mesmo, no testemunho de fáceis condenações, uma obra que ele não desejaria fazer” (1978, p. 189).

Um ponto importante desta parte da introdução é de evidenciar que “todo leitor que relê uma obra que ama sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito” (1978, p. 189). Podemos dizer que a obra ressoa em seu ser, cujas imagens que formam é uma repercussão de seu ser.

Interessante observar esse duplo movimento de Bachelard, de um lado a criação da alma e de outro o espírito que reprime a imaginação: “A menor reflexão crítica estanca esse impulso quando coloca o espírito em posição secundária, o que destrói a primitividade da imaginação” (1978, p. 190).

Entre os autores que coabitam a leitura de Bachelard, está Henri Bergson: “Nessa admiração que ultrapassa a passividade das atitudes contemplativas, parece que a alegria de ler é o reflexo da alegria de escrever, como se o leitor fosse o fantasma do escritor. Ao menos, o leitor participa dessa alegria da criação que Bergson considera como o signo da criação. Aqui, a criação se produz na linha sutil da frase, na vida efêmera de uma expressão” (1978, p. 190). Poderíamos também entender que o leitor constrói a sua imagem a partir da obra, estendendo o plano de expressão, ou seja, insere-se em um devir criativo.

 

Parte V

Nessa subdivisão da introdução, Bachelard sinaliza o devir da expressão de um verso como um “fenômeno da consciência iluminada” (1978, p. 190). A imagem poética é tomada como um acontecimento psíquico que produz uma realidade sensível, neste caso uma obra, como um verso. 

“Mas o verso tem sempre um movimento, a imagem se escoa na linha do verso, levando a imaginação, como se a imaginação criasse uma fibra nervosa” (1978, p. 191). Essa fibra nervosa é o próprio sujeito que se cria no verso. Por isso, Bachelard recorrer às palavras do psicanalista Jean-Bertrand Pontalis: “O sujeito falante é todo o sujeito" (1978, p. 191). 

 

Parte VI

Nesta parte final da introdução, antes de apresentar os capítulos, Bachelard faz uma aproximação da imagem poéticas com um conceito da psicanálise, o de sublimação: “Talvez a situação fenomenológica venha a ser precisada, no que se refere às indagações psicanalíticas, se pudermos isolar, a propósito das imagens poéticas, uma esfera de sublimação pura, de uma sublimação que não sublima nada, que é desprovida da carga das paixões, liberada do ímpeto dos desejos” (1978, p. 191). No decorrer do texto, o filósofo faz várias críticas à psicanálise, talvez por isso e tenha dito “se pudermos isolar”, ou seja, aproveitar de um conceito da psicanálise para associar com as imagens poéticas. Mas ele faz um acréscimo, sublimação pura. A sublimação em Sigmund Freud refere-se à transformação da pulsão em algo socialmente aceito, isto quer dizer, transformação da energia psíquica em uma produção como fazem os poetas e os artistas plásticos. 

A consciência poética, que se forma da imagem poética, aponta para o novo, por isso é “uma linguagem tão nova que já não se podem considerar utilmente correlações entre o passado e o presente” (1978, p. 192). É nessa ruptura com o espírito que se expressa na racionalidade simbólica do mundo, que a imagem poética se expressa e por meio do qual Bachelard dará “no decorrer de nossa obra, exemplos de tais rupturas de significação, de sensação, de sentimentalidade, que será preciso convenhamos que a imagem poética existe sob o signo de um ser novo” (1978, p. 192).

Se o filósofo aproxima a expressão poética da sublimação, também não poupará críticas à interpretação da psicanálise a esse processo: “E logo o psicanalista deixa o estudo ontológico da imagem; ele aprofunda a história de um homem; vê, mostra os sofrimentos secretos do poeta. Explica a flor pelo estrume” (1978, p. 192).  Em síntese, para a psicanálise seria precisar interpretar o poema pelo sofrimento do poeta, ao passo que para o fenomenólogo “a poesia tem uma felicidade que lhe é própria, qualquer que seja o drama que ela seja levada a ilustrar” (1978, p. 192). 

Evidentemente, não se trata de negar a realidade psíquica de um poeta, mas “de viver o invivido e de abrir-se a uma abertura da linguagem” (1978, p. 192). Como podemos ver, o ponto central que Bachelard parece perseguir é o da criação, do acontecimento na linguagem como esse novo que se abre e reluz o ser.  

Bachelard apresenta como uma questão de método separar a sublimação que vem da psicanálise com o que ele chama de sublimação pura. A crítica à psicanálise seque o passe de Jung, para quem considera que os psicanalistas transformam a análise da arte em casos clíticos. A sublimação pura aponta para a compreensão da imaginação nos espaços vividos, que fogem da positivação, ou seja, que escapam da racionalidade que subordina a realidade. “O espaço compreendido pela imaginação não pode ficar sendo o espaço indiferente abandonado à medida e reflexão do geômetra. É vivido. E é vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação.” (1978, p. 196). O primeiro capítulo do livro nos dará conta desses espaços vividos ao qual chama de a poética do espaço.

Observações:

Resenha crítica dos capítulos 8 e 9 do livro "O elogio da palavra", de Phillipe Breton

 

RESENHA CRÍTICA DOS CAPÍTULOS 8 E 9 “MINHA PALAVRA VALE O MESMO QUE A SUA: A SIMETRIA DEMOCRÁTICA”; “DA VIOLÊNCIA À MODERAÇÃO: A PROMESSA DO PROCESSO CIVILIZADOR”

Autores da Resenha:

Cladir Gava, Mestranda em Patrimônio Cultural e Sociedade pela UNIVILLE

Referência do Texto:

Referência do Texto: BRETON, Philippe. O elogio da palavra. São Paulo: Edições Loyola, 2006.

Desenvolvimento do Texto:


Nos capítulos 8 e 9 do livro “O elogio da palavra”, Philippe Breton apresenta uma contextualização sobre o advento de uma nova relação do ser humano com a palavra a partir da revolução democrática grega e analisa as influências desse processo histórico nas sociedades posteriores, incluindo as sociedades ocidentais contemporâneas. No capítulo 8, “Minha palavra vale o mesmo que a sua: a simetria democrática” Breton inicialmente aborda a revolução pela democracia na Grécia, desencadeada por meio da dupla ruptura com a organização social primitiva e com a lembrança da civilização micênica do tipo palaciana. A “revolução das mentes”, entre os séculos VIII e VII a.  C., foi articulada pela representação do cosmos orientado pela igualdade e pela simetria, tendo como referência a lei de equilíbrio e de constante reciprocidade.

A partir deste movimento iniciado no sentido de desestruturar a hierarquia e as desigualdades na organização social, foi desencadeada uma nova ordem mundial, na qual a palavra passou a ter um lugar de excelência. Rompe-se também com o fatalismo predominante nas sociedades primitivas, desmistificando a ideia de destino, em proveito da liberdade por meio da palavra: “Não há mais uma lei transcendente, e sim discussões, decisões coletivas dos cidadãos” (BRETON, 2006, p. 150). Neste contexto, o homem ideal passou a ser aquele que utiliza a palavra com propriedade para discutir, argumentar e participar das decisões tomadas no quadro geral, sendo que “[...] uma palavra equivale a outra, mas na qual nenhuma palavra equivale à palavra coletiva” (BRETON, 2006, p. 151). Com isso, o homem passa a ser visto como um ser distinto dos demais seres vivos e objetos inanimados.

Hannah Arendt (1961 apud BRETON, 2006, p.152) entende a democracia como sendo “um espaço de aparência do qual ela é apenas a institucionalização”. Assim, a sociedade democrática se caracteriza pela palavra e ação conjunta dos homens, que precedem a constituição formal do domínio público e das formas de governo. Com o advento da democracia, evidencia-se também a retórica, a arte de convencer e foi iniciada uma reflexão específica e sistemática sobre a palavra. Contudo, havia a preocupação de que a retórica poderia ser usada como instrumento de poder pela sua capacidade de manipular a palavra. Surge assim um impasse a partir de dois pontos centrais: o primeiro é que, em se tratando de uma sociedade democrática, a prática da retórica somente tem sentido se produzir concretamente um vínculo social igualitário e, segundo, os valores existentes em seu âmago devem ser difundidos sob a forma de um ideal para toda a sociedade, pois são antagônicos à ideia de dominação.

A partir disso, Breton (2006, p. 153) afirma que a retórica “é uma seleção, de acordo com as possibilidades que ela oferece, daquilo que pode constituir um novo uso da palavra, igualitário, pacificador, desenvolvedor para a pessoa no sentido de lhe oferecer os meios para aparecer diante dos outros como pessoa”. Por tratar-se de um igualizador da palavra, a retórica tem uma função essencial na democracia. Ele faz referência a Aristóteles, que inicia a sua Retórica propondo que seus interlocutores refletissem sobre o que é possível fazer e o que não se deve fazer com a palavra. Para Barthes (1970 apud BRETON, 2006, p. 153) a retórica “também é uma moral, uma moralização da palavra, que implica certas renúncias [...] a retórica é uma metalinguagem que toma a palavra como objeto”.

Com a ruptura democrática, segundo Breton (2006, p. 156) a palavra adquiriu “um novo estatuto”, pois não mais se limitava ao “exercício de um poder particular”. Com isso, passou-se a diferenciar o seu uso como opinião da sua utilização para descrever algo. Naquele contexto, os sofistas, que pretendiam ter um saber sobre a palavra, passaram a fazer suas observações. A sociedade grega escravagista não é o ideal do ponto de vista das desigualdades, mas abre espaço para o exercício da igualdade. A democracia grega não suportava a desigualdade diante da palavra, inventando uma espécie de ensino da palavra. Na retórica, são ensinadas técnicas de memória artificial para que as pessoas fossem postas no mesmo nível. Ocorre uma nova relação com a palavra por meio do aperfeiçoamento da escrita alfabética representada pela notação completa dos sons. Mas a retórica é inicialmente uma reflexão sobre a palavra oral e somente após vários séculos, com Quintiliano, ela passará a ser empreendida na palavra escrita. Após destacaram-se os estudos de Roland Barthes, com grande influência na cultura ocidental e Foucault, sendo que a partir do século XVII o discurso passa a ser objeto da linguagem. Enquanto a linguística se ocupa da parte nobre da língua, esta “reviravolta retórica implica um novo olhar sobre a palavra e sua articulação com os meios de comunicação, entre os quais as línguas orais” (BRETON, 2006, p. 157).

A partir deste contexto, Breton (2006) discute uma tripla ruptura para a compreensão do novo estatuto da palavra. Nesta perspectiva, o autor propõe uma análise de uma relação triangular, cuja base é a democracia e cujos lados são formados pela nova relação com a violência e pelo novo lugar assumido pelo indivíduo. A ruptura democrática desencadeou a renúncia aos métodos tradicionais de tomada de decisão e aos métodos tirânicos próprios do sistema palaciano. Porém, os princípios da retórica foram redescobertos em períodos históricos muito tempo após o período grego, nos quais o regime não era democrático. Norbert Elias (apud Breton, 2006) identificou o processo de pacificação dos costumes no regime monárquico francês. A partir do pressuposto de que, por meio da retórica foi redescoberta uma prática concreta da democracia, é importante analisar como este vínculo se manifesta entre a violência e a palavra em um quadro não democrático. Também é relevante estudar os vínculos entre o desenvolvimento do individualismo nas sociedades modernas e contemporâneas.

No capítulo 9 - “Da violência à moderação: a promessa do processo civilizador”, Breton (2006, p. 161) propõe a ideia de que o caminho seguido pela palavra tem sido “uma alternativa concreta à violência”, considerando a sua trajetória no processo de hominização e depois nas grandes transformações culturais e sociais. A violência civil e a das guerras, mesmo se for considerado o decréscimo de vítimas em conflitos armados, são processos característicos tanto nas sociedades primitivas quanto nas nossas e essa é uma das grandes preocupações humanas há muito tempo.

Em cada contexto histórico, cada sociedade dispõe de um sistema de normas que enquadram o uso da violência, em busca “do ideal de uma sociedade em seja mais fácil viver”. “[...] Essas normas são variáveis e evoluíram no sentido de uma intolerância cada vez maior à violência” (BRETON 2006, p. 162). Determinadas sociedades procuram mudar as normativas sobre o nível de violência aceitável, como é o caso dos redatores do Antigo Testamento, as leis de Moisés, dentre as quais se inclui “Não prestarás falso testemunho”, pois a mentira seria uma palavra violenta. São normas de vida em sociedade e imperativos morais que visam amenizar um jogo considerado muito violento. Contudo, por si só não são suficientes para romper o ciclo de violência, sendo necessárias mudanças sociais para instituir normas restritivas e aceitas pela maioria. Foi com este propósito que os antigos gregos estabeleceram uma sociedade democrática, articulando-se em torno de uma nova relação com a palavra: do estatuto da palavra do poder a um poder compartilhado.

A busca pelo fim da violência, segundo Jacqueline de Romilly (apud BRETON, 2006, p. 165) “se manifestou em dois momentos sucessivos: a descoberta da justiça e a descoberta da moderação”. Foi assim que se deu a institucionalização do tribunal na nova justiça grega, com um substituto possível à vingança e à guerra. A nova justiça ligava-se ao processo de difração da palavra no qual a opinião se apoia no fato (objetivação da palavra). No mundo grego, tomar a palavra, passou a ser um dever cívico. Com isso, há um princípio de pacificação nas relações sociais por meio da palavra para interromper o autoritarismo, trazendo, de modo matriarcal, o instituto da palavra do qual somos herdeiros, pois “a palavra moderna é tomada em uma matriz justiciária” (BRETON 2006, p. 166).

Após o Império Romano e a Idade Média Ocidental terem inserido novamente a violência arcaica como questão social, diante das novas exigências de pacificação, o ideal pacificador grego por meio da palavra é redescoberto, em certa medida, pelos humanistas do Renascimento. Essa vontade nova e imperiosa de civilidade manifestada em certos meios emergiu diante do cenário de violência marcado por maus-tratos, torturas, brigas e guerras, cenário esse ainda observado em vastas regiões do mundo.   

De acordo com Elias (apud BRETON, 2006), a partir das mudanças sociais e culturais emerge um novo homem, que busca renunciar à agressão, comportar-se com pudor, aceitar a separação em relação aos outros, enfim, colocar suas emoções em palavras. Breton entende que, com isso, amplia-se o espaço da tomada da palavra, sua importância social e a própria linguagem se civiliza e se pacifica. Há um progresso da criminalização, ainda que lento, dos comportamentos violentos tendo, como indica Muchembled (apud BRETON, 2006), a justiça como produtora do vínculo social.

No processo civilizador herdado por várias sociedades, dentre as quais a maior parte dos países ocidentais, há uma ruptura em relação às normas antigas de violência. A objetivação das emoções graças à palavra passa a ser um espaço de aparência com poder atualizado, implicando uma transformação progressiva de certos costumes, enquadrando a violência em normas sociais precisas. Tais normas implicam o deslocamento da violência à civilização, no qual as regras da retórica e do bem viver são adaptadas às circunstâncias. Os recursos da argumentação são mobilizados, sendo que para atingir a verdadeira natureza humana, é preciso também escutar o outro, o que remete ao ideal de simetria da revolução democrática grega no qual o poder da palavra tende a substituir a palavra do poder. A desigualdade é vista como fonte de violência social e a civilidade, com base na palavra, tem a força de perturbar essas estruturas não-igualitárias.

Essa evolução caminha juntamente com uma transformação interna do exercício da palavra chegando ao despertar da retórica na nova civilidade, no qual são retomadas e desenvolvidas ao menos duas formas: a argumentativa e a informativa. A argumentação adquire grande importância na organização de debates que se caracterizam pela mistura de cerimônia e conversação, que seguem um rígido protocolo. Contudo, segundo Betron (2006, p. 178) esse ideal se concretizou “sob o duplo efeito da progressão das normas sociais que enquadram a violência e da criminalização bem-sucedida da violência civil [...] essa ruptura talvez não se tenha dado em profundidade”. A um menor relaxamento das leis, tem-se o risco de retornar a um estágio anterior. Ainda assim, o processo de pacificação dos costumes serve de referência sobre como a violência pode recuar, principalmente a partir de um novo uso da palavra. Neste sentido, a ideia defendida pelo autor é de que a civilidade e a polidez são “a matriz do processo de objetivação que é essencial ao recuo da violência”. Estes estudos adquirem relevância não somente para uma melhor compreensão dos processos históricos que desencadearam a busca pela democracia e do papel significativo que a palavra tem nas relações sociais, como também para a análise sobre como se articulam estas relações nas sociedades contemporâneas.

 

Observações:

: Democracia. Palavra. Civilidade.

 

O ESQUECIMENTO IMPOSSÍVEL -RESENHA CRÍTICA

O ESQUECIMENTO IMPOSSÍVEL -RESENHA CRÍTICA
Autores da Resenha:
Ian Pogan
Referência do Texto:
VATTIMO, Gianni. O esquecimento impossível. In. YERUSHALMI, Y. et. al. Usos do Esquecimento: Conferências proferidas no colóquio de Royaumont. Campinas: Ed. Unicamp. 2017, p.99-115
Desenvolvimento do Texto:
As discussões quanto ao esquecimento talhado no devir de um século, revela profundamente sobre o legado do ser humano, de suas ideias e traumas. Vattimo, assim como nós, tem o corpo marcado pela impossibilidade do esquecimento. Esta premissa tem significativa espessura histórica, Gianni vale-se de Nietzsche e Heidegger[1] neste debate, e apresenta como esquecimento em certa medida foi e é um sintoma de como a humanidade trata de sua condição.
 A segunda metade do Século XIX foi o período áureo da Era Moderna, a consolidação do conhecimento científico que vinha superando em poucos anos, desafios que pareciam eternos, invenções de toda ordem…  o futuro aproximava-se cada vez mais do presente, e concomitante diminuía as distâncias com o passado[2]. A história teve papel-chave nisso, desde a promoção e legitimação simbólica dos emergentes Estados-Nação, o surgimento de inúmeras instituições de caráter memorialista e histórico, como museus, arquivos e mesmo a estruturação da história como Ciência acadêmica[3], não a toa que o Século XIX foi chamado de: “Século da História”[4]. Com o passado tão evidente, o futuro e sua sorte estariam comprometidos, assim como a possibilidade do “novo” do “original” aparecer, essa era a preocupação de Nietzsche. Em seu texto[5] defendia que o passado deveria somente ser evocado às necessidades práticas, não como elemento mercadológico (valendo-se como atração) ou demagógico (de uso das elites) e docilizador das massas. Aqui, o esquecimento teria uma função de prover o rompimento dessa ordem, buscando a superação do Homem[i].
Influenciado por Nietzsche, Heidegger cunha um outro olhar sobre o esquecimento. Segundo ele, seria inevitável e intrínseco do ser o ato de rememorar. Deste modo, poderia a partir deste haver um processo de descoberta e consigo de uma superação. Em certa medida, esses dois filósofos (Nietzsche e Heidegger) são o sintoma e anúncio do fim (melancólico) do mundo moderno, que veio consolidar-se na primeira metade do século XX, com inúmeros eventos traumáticos tendo destaque, as duas guerras mundiais e os regimes totalitários, que postularam definitivamente não só a impossibilidade do esquecimento, mas o perigo em que a Humanidade corria ao esquecer o passado[ii]. As forças eternizantes da qual Nietzsche discorria como um caminho para a superação do tempo histórico, deu-se na prática por outro campo: a arte do pós-guerra - que encabeçou superação de paradigmas propostos pelos dois filósofos. Em verdade, a combinação de arte, mercado e mídia, gerou rompimento definitivo com o mundo Moderno. Baseadas nas diversas apropriações desses diferentes campos, a arte contemporânea não mais orbitava no campo estético, mas sim no campo da linguagem. Sem mais reportar sua condição à uma perspectiva teológica e utópica e mesmo da necessidade de vanguardas intelectuais, que vinham suprir o esgotamento de movimentos anteriores. A arte passava a ser entendida como elemento pluralistas. Utopias passaram a serem substituídas por heterotopias, ou seja sem mais a busca de um único objetivo, uniforme, único, mas da possibilidade de inúmeros espaços e objetivos.  Definia-se um mundo não mais de essências ou de forças metafísicas, mas um mundo de representações. As apropriações do passado tornaram-se múltiplas e feitas por diferentes sujeitos e de inúmeras formas, criando um novo mundo de possibilidades. Talvez algo em que Heidegger projetava como sua ideia de “descoberta”. O esquecimento é impossível na medida em que o passado ele está cada vez mais próximo do presente[6], assim, a questão não é mais quanto ao esquecimento, mas das complexidades do lembrar e as perdas nesse devir.

Referências:
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232

BOURDÉ Guy; Hervé MARTIN. As Escolas Históricas. Lisboa: Publicações Europa-América. 1983

CONCEIÇÃO, Lívia Beatriz da. Em tempos de ‘fermentação nascente’: uma leitura dos projetos para a instrução pública primária do personagem François Guizot (1832-1836). Rev. Bras.. Hist. Educ. vol.20  Maringá  2020. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2238-00942020000100205  > Acesso em: 23/06/2020

HARTOG, François. Tempo, História e a Escrita da história: A ordem do tempo. Revista de História. n.148, 2003, p.9-34

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Estudos sobre História. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. Tradução de André Luís Mota Itaparica. São Paulo: Hedra, 2017


Observações:
[1]Sintomático a operação da qual Vattimo discorre no texto com base no pensamento desses dois filósofos. Ambos foram apropriados ou tiveram relação explícita em eventos traumáticos (em especial Heidegger e sua relação com o Regime Nazista na Alemanha). N.A.
2 Ver KOSELLECK. 2014 p.121-205
3 Ver BOURDÉ, MARTIN. 1983, p.82-118
4 Como exemplo da importância da história para a legitimação dos Estados Modernos, François Guizot quando ministro na França instituiu a história como ensino obrigatório nacional - “Feita a França, agora seria necessário fazer os franceses” (CONCEIÇÃO. 2020)
5NIETZSCHE.  2017
6 Übermensch, do alemão, conceito cunhado por Nietzsche. N.A.
7 Aqui faz-se necessário lembrar das teses sobre História de Walter Benjamin, em especial a 9a Tese, quando ele discorre: “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (BENJAMIN. 1987, p.226)
8 Recorro ao historiador francês François Hartog quanto ao presentismo e aos processo de aceleração do tempo histórico. (HARTOG. 2003)

RESENHA CRÍTICA DE CORPO E COMUNICAÇÃO: SINTOMA DA CULTURA, DE MARIA LUCIA SANTAELLA BRAGA; POR BRUNA LORRENZZETTI



RESENHA CRÍTICA
Autores da Resenha:
Bruna Lorrenzzetti, mestranda em Patrimônio Cultural e Sociedade pela UNIVILLE
Referência do Texto:
SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Paulus, 2004.
Palavras-chave (3):
Comunicação e cultura, corpo humano, corpo humano na arte.
Desenvolvimento do Texto:

        “O corpo está em todos os lugares. Comentado, transfigurado, pesquisado, dissecado na filosofia, no pensamento feminista, nos estudos culturais, nas ciências naturais e sociais, nas artes e literatura.” (SANTAELLA, 2004 p. 133). A pesquisadora e professora Maria Lucia Santaella Braga coloca em pauta no capítulo 10, O corpo como Sintoma da Cultura, um cenário marcado por questões relativas ao corpo focando na sua onipresença. Para a autora a onipresença do corpo se dá em decorrência às novas formações culturais na era digital da comunicação, decorrentes das inquietações provocadas pela tecnologia e pela simbiose corpo e máquina.
            A explicação vinda de outro texto de Santaella de 2003, recobre o campo da arte, não indicando razão para a onipresença do corpo nas demais esferas culturais. Na sequência contextualiza o século XIX informando que os sintomas que marcavam o corpo, de forma gradual foram crescendo até tornar o próprio corpo um sintoma da cultura. A autora propõe que a centralidade do corpo, especificamente nas artes, deve-se ao fato de que, entre muitos fatores, sob efeito de suas extensões científico-tecnológicas, o corpo humano deva estar passando por uma mutação, cujos efeitos ainda não somos capazes de discernir. Acrescenta que artistas acolhem a tarefa de estarem anunciando essa nova antropomorfia que se passa na esfera humana, utilizando o discurso psicanalítico de Freud e Lacan.
        O que é sintoma, se apresenta como primeiro subtítulo do capítulo, nele Santaella traz o sintoma no contexto psicanalítico como um “mal estar” que se impõe a nós e nos questiona. Para Freud de acordo com Santaella, antes de um estágio doentio apresentam-se sinais do inconsciente, atos falhos, sonhos, chistes (formas de exprimir a realidade), recordações encobridoras. Através do inconsciente faz-se ouvir, revelação, em decorrência, o sintoma é retorno do recalcado. Por sua vez Lacan dá sentido a palavra sintoma através de C.S. Pierce, sendo “aquilo que significa algo para alguém”. Freud vê o sintoma como signo, Lacan, como um significante, que age e produz efeitos de significação, saber inconsciente que sabe do sujeito, sem que o sujeito saiba dele. A partir de 1982, Lacan pensa o sintoma a partir do gozo. Freud não vê o gozo como prazer, mas como uma paradoxal espécie de prazer na dor. Santaella finaliza a primeira a primeira parte com o questionamento: em que medida estamos autorizando esse conceito (clínico em primeira instância), para o campo da cultura?
          No segundo subcapítulo, Sintomas da Cultura, estruturado nos conceitos da psicanálise, avalia os sintomas da cultura a partir do “mal estar” freudiano, pelo desconforto produzido pelas renúncias pulsionais que o indivíduo é levado a realizar em prol do sistema de interdições que constitui a civilização. Relaciona na sequência a teoria da condição humana de Lacan que leva o sujeito a obter gozo pela renúncia do próprio gozo. Assim, o sintoma é o que se insurge contra a exigência civilizatória do recalque. Nessa perspectiva a cultura não é apenas a realização de desejos. De acordo com Leite (2000) citada por Santaella, constata-se a emergência de novas formas de o sujeito fugir do mal estar, intensificados pelo poder das mídias, surgem novos dispositivos outros modelos sugeridos aos sujeitos de evitar a angústia. Consumidores tornam-se acumuladores de sensações. Uma vez que a sensação adere ao corpo, trata-se de um novo modo de gozo que encontra seu alvo no corpo e o próprio corpo torna-se mercadoria. Surgem modos contemporâneos de gozo, piercings, tatuagens como também flagelos ao corpo, distúrbios alimentares, remodelagens de corpo, exaltação, exibicionismo. O corpo se tornou sintoma da cultura. As afirmações de Santaella são identificáveis frequentemente no universo midiático e contemporâneo.
           Na sequência aborda O Corpo na psicanálise, iniciando com o questionamento, o que é corpo? O corpo, físico, fisiológico, o real do corpo, que compartilha, que sofre mudanças, sente dor, sobrevive, adoece, envelhece e morre. Na psicanálise o corpo é pulsional, imaginário, simbólico. Para Freud o corpo apresenta-se por intermédio do Eu, e este não nasce pronto, se desenvolve progressivamente. Um Eu que está ligado à imagem do corpo, que Freud associou a muitas teorias, sendo uma na qual o Eu é fundado na pulsão, auto conservação, lugar determinante no recalque, onde o corpo, primeiro é um corpo olhado, e que se modifica pela identificação. Santaella apresenta Lacan sistematizador que apoiou sua teoria na categorização da realidade psíquica nos registros Imaginário, Simbólico e Real.
      O capítulo desenvolve a partir de três subtemas: - O corpo Imaginário, que segue o pensamento de Lacan em que o Eu está ligado a imagem do próprio corpo. Apresenta essa relação desde os 6 meses de idade de uma criança. Aponta o júbilo de se conhecer ao espelho ocultado por um logro, fonte de alienação que perseguirá o ser humano para sempre. Esse Eu é formado a partir do Outro, que identificamos pela primeira vez no espelho, um Outro rival, imagem narcísica, condição para aparecimento do desejo, engate dos significantes do desejo do Outro. - O corpo Simbólico é apresentado como corpo aparelhado pela linguagem, condição de um corte entre sujeito e objeto, transformando objeto em uma abstração, onde o significante é um poder que mortifica. - O corpo Real, descrito como pulsional, tendo como referência Freud, sendo que nenhum objeto poderá trazer satisfação a esse corpo, pois a natureza da pulsão é dar intermináveis voltas em círculos, em busca de meta inalcançável. O corpo real avança para o campo psíquico, além do físico e se vê desejo, no prazer, satisfação e felicidade. A autora destaca que Lacan apresenta a relação do gozo como uma origem sempre sexual, não especificamente genital. O Imaginário, Simbólico e Real do corpo sofre uma incompletude que a autora relaciona com o que o capitalismo oferece no sentido de tentar preencher essa completude impossível.
     Corpo como Sintoma, o último subtítulo propõe reflexões sobre três tipos de gozo ditos por Lacan: gozo fálico (energia dissipada, sendo o falo limitador do gozo que sai e do que fica retido no inconsciente); mais gozar (parcela de gozo que fica retida no interior do sistema psíquico, cuja saída é proibida pelo falo, excedente residual que aumenta tensão e se encontra nos orifícios do corpo, explicando o porquê do início do desejo nascer das zonas erógenas) e gozo do Outro (ponto absoluto e impossível da liberação total do gozo). Santaella reforça que na visão psicanalítica o gozo não se explica como prazer sexual e sinaliza um ponto em comum entre os três gozos e os sintomas do corpo imaginário, simbólico e real. Finalizando o texto, Santaella cita Pommier (2002) que descreve a humanidade buscando diferentes receitas para cozinhar sua angústia, receitas ideais para cada época. Enfatiza que as marcas do corpo significavam alianças com espíritos e a flagelação no Período Medieval causava efeito interior de purificação, hoje são signos que pertencem ao regime equivalente a seu valor de troca.
Observações:
A obra permite discussões interdisciplinares entre áreas da comunicação, psicanálise, filosofia.


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