RESENHA DA OBRA "NOTAS INCOMPLETAS SOBRE ASSUNTOS DO TEMPO", DE VALTER HUGO MÃE, POR DÉBORA SHOENHALS E JÉSSICA DUARTE DE OLIVEIRA.


memória, tempo e afeto
Autores da Resenha:
Débora Shoenhals, acadêmica do curso de Letras da UNIVILLE
Jéssica Duarte de Oliveira, acadêmica do curso de Letras da UNIVILLE
Referência do Texto:
MÃE, Valter Hugo. Notas incompletas sobre assuntos do tempo. Curitiba: Gusto Design, 2014. p. 17-23.
Palavras-chave (3):
Notas; memória; tempo.
Desenvolvimento do Texto:
 “Notas incompletas sobre assuntos do tempo”, escritas por Valter Hugo Mãe e apresentadas pelo autor no Festival Literário “Litercultura” em agosto de 2014. Transcrito em sete páginas, sem figuras ou imagens, discorre sobre os assuntos que permeiam a efemeridade do tempo e a memória, como ele próprio expõe como “a única possibilidade de regresso” quando, um dia, somente ela restará. Todavia como um refúgio para nos deter naquela brevidade de outrora que o tempo insiste em apagar.

O texto inicia com uma breve reflexão sobre o passar e a crueldade do tempo, mencionando a memória como a única sobrevivente deste e, então, nem mesmo ela restará. Em seguida, o autor utiliza da construção de memórias afetivas para ilustrar os significados que nos tornam humano, encerrando suas reflexões com a conclusão de que o amor é o que torna a memória algo intrínseco ao ser humano, e não a materialidade do corpo e dos objetos.
Hugo Mãe compara o tempo como um roedor que enumera o envelhecimento e com ele as coisas boas se dissipam. O tempo é um verme que corrói devagar todas as coisas boas da vida quando tudo o que desejamos é que ele seja todas as maravilhas, tudo aquilo que amamos juntos e contemplando a beleza que é viver.
O autor nos apresenta a seguinte frase em um tom aparentemente autobiográfico:
                                         Eu respondi que nós somos o que somos também porque estamos rodeados do que nos rodeia e o único modo de tudo continuar é cuidar que nada se perca. O meu pai disse: isso é memória. Não é uma árvore, é a memória da árvore que vai ser fundamental na tua vida. (MÃE, 2014, p. 18)
 Embora aquilo que nos rodeia constitua o nosso ser, é a lembrança de todas as coisas que futuramente nos dirão quem fomos, pois as árvores podem ser cortadas, as pessoas se vão, as coisas vão sendo substituídas, porém seu significados, suas sensações provocadas em nós, nos habitarão e nos dirão que realmente tudo o que aconteceu realmente aconteceu, e através do tempo nós permanecemos, principalmente quando sabemos nos reconhecer no outro e sermos reconhecidos numa reciprocidade  e “num grau de desarmada intimidade”.
                                         Nós estamos de volta quando alguém acompanha a nossa história, quando alguém sabe de que árvore estamos a falar. Se ninguém acompanhar a nossa história a gemente não volta porque não tem para onde voltar, simplesmente seguimos sem sentido porque tudo quanto somos e fazemos se desperdiça na solidão. A solidão pode ser um estágio, mas ela não é um destino do homem. Ela é uma experiência do homem mas aquele que se entrega à solidão optou por perder a humanidade. (MÃE, 2014, p. 19)

Para o autor, o sentido da vida está nos outros que dão origem, legitimam e completam a nossa existência, bem como é através dos outros que a felicidade se faz, na troca, na partilha, no acolhimento.
                                         A humanidade é memória e, por isso, é um coletivo. A humanidade implica regresso e o regresso, (...) é lembrar e ser lembrado. Ser gente implica os outros e os outros são a nossa transcendência, aquela que verdadeiramente nos deve preocupar. Assim, ainda que algo esteja fora de mim pode ser essencial para me completar, identificar, definir. Por natureza, mesmo na hipótese de deus não existir, a humanidade já é transcendência. Ela está acima do corpo, ela está no outro, começa com a existência do outro. (MÃE, 2014, p. 19)

Nós transcendemos do outro, somos parte dos nossos pais, por exemplo, e ao sermos. Como o autor coloca, quando alguém ver nas ruas a nossa mãe ou nosso pai, pode-se dizer que está vendo a nós mesmos. Partes de nós que habitam aquela pessoa.
Também nas coisas, nos objetos, nós transcendemos, pois neles há muito o que contar de nós. Neles depositamos nossas melhores ou piores lembranças. De uma viagem concretizada ou não, dos lugares visitados, de pessoas especiais, que permanecem ou que se foram, de momentos, de sabores, de saberes. Somos parte daquilo que temos. Guardamos partes de nós e essas partes de nós são pequenos fios de memória que se impregnam sutilmente naquilo que possuímos.
E toda essa transcendência, essa parte de nós que está fora de nós, está definida pela memória. E a memória é afeto, é ter a quem chamar de lar, é o oposto da solidão. É apenas na conexão humana que o ser humano se reconhece enquanto pertencente a algo maior que ele próprio:

                                         Quando o filósofo Edmund Husserl define a transcendência como aquilo que está fora de nós, talvez não tenha perspectivado que a identidade do humano está fora de cada um. A humanidade é memória e, por isso, é um coletivo. A humanidade implica regresso e o regresso, como bem aprendi com o meu pai, é lembrar e ser lembrado. (MÃE, 2014, p. 20)

De forma sutil, em meio ao fluxo de pensamentos frenéticos expressados com uma linguagem lírica que levam o leitor a acreditar que ele próprio vivenciou as memórias relatadas no conto, chega-se ao fim de toda a memória com a inevitável morte. Hugo Mãe diz que “conceber a morte parece sinal de desistência” (MÃE, 2014, p.21) quando se perde alguém sem estar preparado. É inevitável a reflexão de onde está localizada a memória quando se trata deste assunto, se o corpo, mero objeto, é o suficiente para carregar a conexão humana como as árvores da infância do autor carregaram, um dia, o sentimento de pertença:
                                        
                                         Eu mantinha na cabeça a história da memória das árvores. Pensava em como seria verdade ou mentira a necessidade de manter apenas a memória. Se eu ainda lembrasse muito o meu pai, seria possível que vê-lo tornado esqueleto me parecesse normal. Essa era a questão. Poderia aquele esqueleto ser ainda a memória bastante do meu pai, ao ponto de eu sentir que tinha mais um dia com ele, um maravilhoso e inesperado dia extra. (MÃE, 2014, p. 22)

E é então, com a brutalidade do tempo e o decompor da carne, que o autor concluí que não é a materialidade que carrega a ternura da memória. O corpo, os objetos e as árvores nada mais são do que receptáculos de sentimentos que extravasam a razão. O tempo, que outrora fora comparado com um verme, pode destruir tudo, e o que resta, no final, é o amor. Amor esse, como colocado por Hugo Mãe, que se sente por dentro, na alma.

Observações:
Mesmo para leitores que nunca refletiram a respeito desse tema, o texto não é de difícil entendimento, uma vez que a liricidade construída pelo escritor conversa com a essência de todos que um dia se conectaram a algo ou a alguém. As palavras selecionadas são de fácil compreensão, ainda que a grafia esteja no português lusitano e muitas vezes os sinais de pontuação e suas regras sejam deixados de lado por questões estilísticas. O texto é carregado de reflexões acerca de algo que une os homens: o sentimento.


Um comentário:

  1. OIII , tudo bem? eu li esse texto "Notas incompletas sobre assuntos do tempo" e estou em busca dele em arquivo, não estou conseguindo achar na internet! se você tiver pode me mandar? janainamicheluzzi@gmail.com
    Eu moro em curitiba e participei do litercultura, fiquei apaixonada e tinha uma cópia....só que perdi com o tempo

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